segunda-feira, 16 de março de 2009

SORTE MALVADA

Anda às voltas pelo quarto, Levante e Poente. A tijoleira está gasta, tem o molde do seu caminhar - dois pés para lá, dois para cá. Primeiro solas, a seguir elas cremadas no chão. Descalço, barbas a varrerem pó. O quarto tem a sua vida presa. Conta-a. Todos os dias, uns iguais aos outros. Conhece cada metro, cada palmo, cada polegada. Passos sem fim, número 43. A mesma pegada, sempre a mesma, aos 20 anos o corpo encerra o crescer e em 20 anos não enceta o mirrar. Passos. Tempo voado. Agora dá voltas, o destino perdido. Incrédulo. A claridade cega-o. A porta está aberta, dá para a rua. Passam rodas com gente dentro, com gente em cima. Mulheres de saia curta, às cores. Há quanto tempo não via Manuel o mundo?

Há 20 anos, a mãe morreu pela manhã. Desconhecem-se as badaladas do último sopro, a ronda exacta dos ponteiros do relógio da sala. Esguio como ponto de exclamação: “Eu estou aqui e sou dono do teu tempo!”. Ninguém sabe quando morreu, andava para partir há muito. Um inchaço, uma dor, um cansaço – mal sem nome. Terá sofrido, sorrido? Ninguém sabe, ninguém viu. Nem o relógio de vaidades burguesas, oferecido por uma tia velha de que ninguém lembra o rosto. Em quando andaria ele? É dono do tempo, mas não do que cabe nele.

Manuel acordou à hora do costume, galo de crista no ar, silêncio de pernas curtas, sete badaladas. Despertou ansioso, o laço de um presente aguardava os nós dos seus dedos. Era o dia do seu aniversário. Quereres para amanhã desabotoavam-lhe o sorriso. Faltava-lhe um dente, nada que lhe roubasse o encanto. Corpo de celta, olhos adourados como que pincelados, coisa de arte. Esfregou-os, ramelas nas esquinas, afastou as mantas de lã – era Inverno, o frio aturdia – e levantou-se. Não com pressa, tranquilo como acreditava que os homens grandes faziam. Era o seu primeiro despertar de macho feito, faltava-lhe destrinçar a verdade da rotina. Se soubesse que a mãe estava morta, ou que se morria, ter-se-ia levantado de repente, num arroubo, sem sequer passar os dedos pelas pálpebras, menos ainda aguardar uns segundos, sentado na cama e nas ideias. Mas não adivinhava. Tão-pouco que o futuro eram aquelas quatro paredes bolorentas. Nunca mais se ergueria assim. Daí em diante, nas manhãs seguintes, nas manhãs dos próximos 20 anos, arrastar-se-ia na cama até as pernas desmaiarem no formigueiro do “não me movo”.

A mãe morreu antes das sete badaladas. Ou por aí, as carnes ainda quentes ao fumegar da chaleira. Ele fazia anos, 20 anos, virar homem. Esperava na cama, inquieto, vontade de correr até à cozinha, desapertar o nó do avental amarelo que ela nunca tirava, receber um beijo morno e o presente. O presente esperado. Sabia que a mãe amealhava há muito, moedas numa lata de alumínio azul, velho albergue de bolachas a açúcar salpicadas. Há uns anos, depois do desaire, homens de rosto cerrado levaram tudo o que tinham. A única fortuna que sobrou foi o cheiro a café acabado de fazer. E o amor. O amor que os mantinha lado a lado, a caminhar de queixo alto, desde o dia em que o pai se fora. Matara-se, pum! um tiro, morte que pesa a quem fica. Na escola, os miúdos faziam-lhe “pum!” E a verdade: “O meu pai matou-se”. Na rua, as vizinhas olhavam-no E a verdade: “O meu pai tinha dívidas, acobardou-se”. Em casa, a mãe abraçava-o E a verdade: “Estamos sozinhos”. Naquele dia, tudo se tornaria passado, jurava ele. Alcançava duas décadas, idade bastante para pum! fantasma.

Levantou-se da cama, lençol de flanela damasco maduro, tropeçou nos chinelos, correu, bateu a porta do quarto – para trás ficava a máscara de chegar a crescido. Mas na cozinha nada, nem café à sua espera nem avental para descarregar tropelias. Pôs a chaleira ao lume, deu voltas à mesa, dentes numa côdea de ontem. Junto ao saquinho de linho branco, Pão a ponto-cruz bordado, achou qualquer coisa, laço de presente. Um envelope: “Para o meu filho”. Ele. Tivesse pai e a prenda era a água-benta da geração. A todos calhava, de mão-beijada, um certo travo a orquídea em álcool. Uma ida às meninas da Rua da Jeropiga, luz encarnada a indicar a porta, saiotes a amaciarem chão, pares ao ritmo de quadris em calças de cotim. Mas não tinha. E a mãe, mais devota ao terço do que às intempéries do desejo, nunca o deixaria assim soltar os suspensórios. Continuava por chegar a data de Manuel aportar no varandim, cortina de veludo a fazer de porta, descobrir a matrona: “Porte-se benzinho, doutor”. Para que amealhara a mãe?

Meses a fazer bolos, bater ovos com farinha, tirar do forno e vender de casa em casa. No dia dos 20 anos, havia de dar ao filho entrada nos mistérios da vida. Não nas meninas, na bruxa. Antes, mulher de adivinhar. No fundo, e tirado o mote do prazer, ir a umas ou a outra assentava no mesmo. Pôr o destino nas mãos de alguém. A nu. Como se o descobrir fosse uma tentação de onde não se consegue sair. Estava decidida a dar-lhe o futuro de presente. O rapaz, sina na mão áspera, entrou e saiu da cozinha: “Mãe!”. Ela não respondeu, ele deu-a por atarefada na horta. Dar comida às galinhas, cortar ervas e encher o tanque de água. Gelada, graus de enrugar dedos. Ele encolheu os ombros, pegou no envelope embrulhado. Atirou o laço para cima da mesa, toalha com pêras pintadas, fruteira vazia. Leu: “Vale uma consulta na Madame Soledad”. Trazia a morada, dez minutos a caminhar. “Mãe, mãe! Vou lá a correr! Obrigada!” A chaleira a fumegar, os bichos a roerem a madeira do soalho, resposta alguma. “Mãe!” Nada. Demasiado burburinho nele para ouvir o silêncio. Partiu. Passos apressados, um cão no rasto, latidos em vez de banda, manchas castanhas nas orelhas, magreza a pedir ternura.

Dez minutos, cansaço nas pernas. Deteve-se. Duas portas erguiam-se à sua frente. Numa, salivar, cheiro morno de bolo de chocolate; noutra, franzir, odor quente de velas à espera. Manuel, intuição nos pés, aproximou-se da segunda. Nesse instante, a vida a começar (a parar). Quatro dedos de medo na maçaneta da porta, periclitantes. A mão esquerda ali, um minuto, dois, e nada. O cão calara-se, fora-se de orelhas baixas. O rapaz tremia, devia dizer “bom dia”, mas os lábios silenciavam-se. O corpo inteiro no mesmo compasso, nem rodar nem falar. Em frente a uma porta, maré de suor na maçaneta de madeira. Gasta, uma farripa a espetar as carnes. Aquela mulher do outro lado. A senti-lo perto, por ali, a chegar. A levantar-se da cadeira, passos esguios, quatro nem mais nenhum. Abrir a porta, a maçaneta a rodar e ele no corredor sem a conseguir largar. O lenho a cravar-se no monte de Saturno e ele preso à dor do descobrir. A porta a mover-se: “Estou à sua espera”. O rapaz a entrar. Abrir muito os olhos para ver melhor.

Primeiro, uma mancha encarnada. O cabelo dela como rosas desavindas. Depois, os santos, santinhos, imagens de pôr fé, numa prateleira, noutra, no chão, na mesa. Um gato preto a passar, caminhar vaidoso, via-se que capado. Uma mesa redonda e duas cadeiras, almofadas a jurarem conforto. Um lugar para ela e outro para ele. E ali, à vista de ambos, à mão dela, as cartas. Um baralho velho, gasto, o enforcado amarelado. Como se chamava ela? A esticar-lhe a mão: “Entre”. E a mão magra, quase escanzelada, veias prontas a zarparem, branca, muito branca, a indicar-lhe passagem: “Faça favor”. E ele a transpor o umbral, molhado de ansiedade. Os olhos dele presos à mão dela. Não bem à mão, mais ao indicador. Olhava sempre, era o que primeiro via em alguém. O indicador da mão esquerda - sangue de coração, quente até à raia. O dela mais ainda, quase tocava o dedo médio. Ordenava e ele cumpria.

Madame Soledad. Havia qualquer coisa nela que o baralhava. Cartas paradas à espera de lhe encontrarem o futuro. E o indicador a mostrar-lhe a cadeira: “Sente-se”. Sentou-se. Calado de medo. Rosto quente, desatino escalda. O indicador dela como pêndulo, ele a entregar-lhe o pensamento. O dedo vestido de anéis, pechisbeque a valer ouro, plástico a encarnar rubi. E a unha encarnada, afiada, a despontar como varinha de condão. E ele sem nenhum, um vazio no lugar do indicador. Nasceu assim, sabe-se lá porquê, desdado. A mãe bem lhe dizia, à noite, antes de arrumar as agulhas de bordar num saquinho, em tempos de alfazema: “Ai rapaz, estás fadado a não encontrar destino”. Desatino queima. Também por isso lhe oferecera aquele presente - cartas na manga para emendar a natureza.

Quantas vezes reviveria aquele momento? Todas as horas, todos os dias, todos os anos daqueles 20 anos. Encurvado na cama como bicho acossado, às voltas como ponteiro sem Norte. Fechado em quatro paredes. Elas bolorentas e ele também. Morto, à espera da vida. Nos primeiros meses, talvez ainda nos primeiros anos, o relógio da sala continuou a anunciar o escorrer das horas. Badaladas, presente a engolir futuro, badaladas. Depois, calou-se. Acabou-se a pilha, cansou-se de não ter em quem mandar no tempo. E ele deixou de o ouvir. Pouco se importou, o seu único ponteiro era mesmo o prato de comida. Um prato de servir sopa, esmalte branco e rebordo azul, coberto com um paninho bordado. Para não arrefecer, para limpar os lábios. Todos os finais de tarde, duas pancadas de punho cerrado na porta do quarto, tum-tum, a chave a rodar de mansinho, nem uma palavra, uma nesga de claridade, o prato no chão. Ele a apanhá-lo, a comer, mais um risco na parede, mais um dia desperdiçado. (Gostava de bacalhau com grão, espinhas guardadas para traçar calendário.) Às vezes, a cabeleireira encarnada daquela mulher tomava-lhe de assalto o olhar marejado. Espinhos: “Vai chegar a casa e encontrar um grande desaire”. A visão dela imbuída no retrato da mãe. Deitada na cama, morta ao amanhecer. Acertara na desgraça como não acertar no resto? Pensava nisto, via e revia o indicador de ourivesaria, unha a indicar marcha. Aquietava-se. Sem saber se dia se noite, quedo. E credo. Mas isso foi depois de a conhecer.

Havia velas espalhadas pela sala da mulher. Manuel revolvia-se na cadeira. Ela olhava-o sem verbo. Percebeu que era canhoto, pediu-lhe a mão esquerda. Decifrar que rumo seguiam seus dias. Ele avançou, tanto medo quanto à porta. Ao toque, ao primeiro toque, sentiu uma claridade (surpresa talvez) trespassar-lhe o peito. Algo estranho, nunca assim sentira. Nem quando se aventurara a cruzar a Rua da Jeropiga, carnes de mulher na esquina, nem sequer ao pousar a sua, na mão de Carolina. Na festa da terra, acordes de gaiteiros e ruído de cadeirinhas em círculo. Aquela mulher atordoava-o. Bruxa, adivinha. Talvez a insensatez do dedo dela, o cabelo não, talvez o ardor do olhar vazio, sem sombra de alegria ou de tristeza. De repente, ela sugou-o ao pensamento. O seu dedo percorria-lhe a mão como vento. Amainou, chamou-o pelo nome. Manuel. A mãe podia (devia) ter feito as apresentações, não se espantou. “É um homem de sorte.” Ele gostou daquelas palavras. Na verdade, era um poço onde corria a água turva da crença. Acreditava em Deus, em tudo o que fosse maior do que ele. E isso era, em pequeno, o relógio da sala. Em grande, o raio que fulminara a árvore do quintal. A igreja ao domingo, dormitar no sermão e nas velinhas. E era aquela mulher. Aprendera a crer no regaço da mãe, cedo entendera que a fé é o respirar dos infelizes. Dança de pulmões, para baixo e para cima. Ela pôs o baralho de lado: “Traz a vida nas mãos”. Trazia? “Eu vou ler e você vai ouvir.”

Ouviu. Vezes sem fim, de seguida, repetida. Anos a fio, a voz dela na cabeça dele. Vinte anos. Às voltas naquele quarto. Seu. O colchão amolgado do seu corpo, o chão ferido dos seus passos. Ouvia-a. “Nunca encontrei um destino assim. Não faça nada, nada que provoque a ira do fado. Há aqui um desaire. Dois, parecidos. Um está à sua espera em casa.” Assim era, o pai pum!, a mãe na cama por acordar. “Mas depois, depois disso é a glória. Destino de rei.” Quando já não conseguia escutar mais, as previsões ainda em eco a toldarem-lhe o juízo, sentava-se no chão junto à janela, entaipada com velhas tábuas. Cerrava as pálpebras e sentia a vida lá fora. O chão inteiro nos pés descalços e a terra, de quando em quando, a latejar como corpo de amante. A certa altura, ainda antes das fervuras, começara a ouvir vozes, um frenesim constante, gente sem medo de falar. Ao princípio assustara-se, pensou que viria a polícia, cacetetes em punho para rasgar a ousadia. Depois, deixou de tremer. Não entendia o que diziam, aos poucos fora-se esquecendo das palavras, sentia a sua existência e isso bastava. Por vezes, chegava uma música, canções soltas sem casa pobrezinha. Colava então o ouvido ao bolor da parede, mas já nada sabia do mundo. Como imaginar gente sobre carris debaixo dos seus pés, falar sem grades na esteira dos cravos?

O ar da manhã pouco corria na sala da mulher. Manuel pingava desassossego, ela não. Mas o suor de um era o de outro. Madame Soledad segurava-lhe a mão com força, a palma de encontro aos seus olhos, cor de quem caminha entre mundos. Não era cigana, apenas alma atrás do melhor vento. Entre uma tempestade e outra, aprendera a adorar as linhas. Sulcos falantes na mão de cada um. E a linha da vida de Manuel era funda como raiva de enxada em manhã de sementeira. A da cabeça não. Era de outra nação, entrecortada como se quisesse falar e não pudesse. Denunciava um homem, denunciava-o a ele, rapaz ainda aos tombos com ser quem é. A do coração, essa, nascia no exacto espaço onde deveria ter crescido o indicador. Linha por inteiro, sedutora como lua prenha. A mulher começou a desvendá-lo: “Parabéns, oh graças! É incrível! Vida de rei...” Sem freio, falava sem parar. E ele escutava, em silêncio, sem perguntas, quase embriagado, como se a cabeça em fermol. “Tem uma vida longa e cheia. Vai ser rico, muito rico, tão rico que não saberá o que fazer ao dinheiro. Vejo tanta, tamanha fortuna... Oh, oferece-me uns anéis?” E ele caído na rota do encanto. “Vai ter uma fábrica, não, duas, cinco! Dar emprego a muita gente e não ser empregado de ninguém.” As palavras rolavam dos lábios dela para os ouvidos dele, que nem dados em mesa de póquer. E ele percebia então. Tudo há muito escrito, o destino fundeado na palma da mão. Homem como disco num prato, faixa de vinil à espera de agulha, o futuro era certo. Canção. Apenas estar quieto para não baralhar a sorte.
Prendeu-se, liberdade de estar preso. Os anos a passarem e ele naquele quarto, sempre ali, encarcerado, a ouvi-la ainda. O futuro nas mãos e ele a cerrá-las para não perder o tempo. Caminhava em quadrados, pleno da medida exacta do seu mundo. A parede do fundo tinha três passos largos, a outra quatro, novamente três e outros quatro. Também podia medir em passinhos curtos, bailarino sem dança, 12 para o bolor do fundo, 16 ou 17 para a parede da cama, de novo 12 e mais 16. O lençol de flanela tornara-se tela de fios, roupa de cama em madeira que rangia e nada impedia de cair. Estava ali há 20 anos. Quieto. Duas décadas sem verbo. Gastas. Não fazer nada para não atordoar o destino.

Decidira assim, encerrar-se, cativo da sorte. Às vezes, ocorria-lhe desistir. Abrir a porta do quarto, esfregar os olhos para não estranhar a vida, subir o degrau do corredor, não bem isso mais lomba, e sair. A rua. Que imagem seria a do som? Pi-pi, pedrinhas a rolarem, acelera estúpido. Mas depois pensava em Carolina, lábios sedosos à espera dos seus. Podia tudo, menos arriscar-se a perdê-la. Desistia, ficava. Contava os anos pela barba. Começara por dar um nó, depois outro. Não sabe quando, falta-lhe saber tanto, desleixara-se. Nem mais um nó, pêlos pelo chão que nem vassoura. Contava os anos também pelos sonhos. De abóbora, fritos em óleo. Sempre dois, a deixarem nódoa no paninho de linho, todas as consoadas. Prenda do vizinho, isso e cinco velas, amigo de lançar pião sobre charneiras, na calçada da rua em frente.

No dia em que decidiu trancar-se à espera do futuro, pediu-lhe, ordenou-lhe que lhe levasse um prato de comida todos os começos de noite. Nada mais, nem palavras nem claridade. Sempre, até o destino acontecer. O outro retorquiu, não quis, mas Manuel foi em frente. Num abraço, lágrimas de adeus, cruzaram suas honras. Às vezes, quando o prato de comida (iscas é que não) tocava o chão do quarto, Manuel pensava chamá-lo. Gostava de saber o que lhe acontecera. O amigo era de azar, até a lançar o baraço sempre perdera. Imaginava-o, qual se despedira dele, à mercê do pai. Um velho sovina que dormia num travesseiro de serapilheira, diz-se que contos de réis a transbordar. Não corria água nem alento naquela casa. O chão fazia-se de agulhas de pinheiro, folhas de sobreiro e parras de periquita. Os ossos que o cão não queria amontoavam-se, as fezes de uns e de outros também. Chão estralhado, assim se chamava o engenho de poupar na tijoleira e ganhar no estrume. Coisa de gente bruta, ensinara-lhe a mãe, criada longe de tais usos. Arroto a sair da boca, navalha e queijo no bolso, dorso feito à sela do burro.

Madame Soledad tinha sotaque de ficar no ouvido. Falava como quem declama, as sílabas agudas sugadas até para além da pauta. Cheirava a hortênsias, chá de jasmim. E soprava o destino: “Estou a ver, sim, não tenho dúvidas, oh, que linda! Cabelos longos, pele macia, sorriso ateado. Chama-se Carolina, não é?” Era. “É sua, está-lhe destinada. Vão casar, ter filhos – quatro filhos – que felizes!” E ele a levitar, imaginar-se de mão dada a voar os anos. A mulher não se calava, a mão dele contava tanto que ela até o baralho desprezava. Fortuna, mulher amada, saúde, alegrias, presentes de sorrir. Ele ouviu até ao fim, cada palavra uma condenação. Saiu de lá a correr, rapaz feito rei. Caia uma chuva inquieta, uma pedra teimava em magoar-lhe o pé. Em dó menor, o estômago orquestrava. Sonata rouca, não tanto vontade de comer, mais fome. Esquecera-se do mata-bicho, chaleira ao lume. Chegou a casa e encontrou a mãe. Morta, morrera antes da alvorada. Abraçou-a e chorou-a. O resto do dia, a noite inteira. Mas as palavras da mulher cozinhavam-lhe ambições nos ouvidos. O desaire era aquele caixão de madeira barata e ele nele debruçado. A mulher acertara na dor, faltava cumprir-se a fortuna. À saída do cemitério passou por Carolina: “Até ao nosso casamento!”. A rapariga riu envergonhada, crente que era graça. Depois, o amigo e a porta do quarto a fechar-se. Trás!

Ele lá dentro, roupa desfeita pelo tempo. Já nem calças intactas para se sentir apertado, explosão de rapazinho, ao pensar na esquina da Rua da Jeropiga. Os olhos adourados feitos penumbra, os sons da rua a inquietarem-no. Na outra noite, quase jurava, alguém se encostara à sua janela a namorar. Ouvira juras de irem com o vento, não entendia como, o varandim da matrona palpitava a quarteirões. Caminhava de um lado para o outro. Cansado, corroído de tanto esperar. Suava, há horas que corria em quadrado, “vou apanhar-te, vou apanhar-te, anda cá malandro!”, como a mãe atrás das galinhas. Corria sem parar, tropeçava na barba, nos passos, na desilusão de si, “anda cá danado, vou apanhar-te! Anda cá, destino!” E caia, e corria, “ai Carolina”, e levantava-se e corria e caia.

Nisto, de repente, o inesperado. Como imaginar? Um barulho, a chave a rodar, um suspiro, última volta, um instante. De súbito, a porta do quarto a abrir-se. Alguém a abri-la. Vinte anos depois, o mundo de par em par. Ele cego, atordoado pela claridade, estourado, a atirar-se para o chão. Chorar sem lágrimas. Seco. Há quanto tempo secara? E o vizinho a livrar-se do papel de carcereiro: “Manel, desculpa, não posso mais!”. Vinte anos, durante tanto, mensageiro de o manter vivo. Sobrevivente. Agora desistia, não suportava mais. Baixou-se, abraçou-o: “Manel!”. Vinte anos passados, a história a parar (a começar). Levantou-o, sentaram-se na cama. Os dois homens. Cegos. Claridade lá de fora, escuridão cá de dentro. O vizinho falou, falou até não lhe restar palavra. Manuel demorou a ouvir. Via apenas. Pernas de mulheres a passarem, rodas apressadas, miúdos de sapatos novos. O país outro. A vida toda a um passo e ele, há vinte anos, num quadrado. Fechado.

Depois, ouviu, ouviu tudo até não lhe restar fé. Incrédulo. O amigo era um homem feliz. Lançara-se à vida, nos bancos da escola e nos becos do amor. Trepara a pulso. Estava rico, muito rico, tão rico que lhe comprara uma casa, alpendre e tudo. Estava ali para lhe dar as chaves. Esta, junto ao mercado, aguardava demolição, daria esquina a um banco. Das noites no chão de estralho, ranho a passear no buço, nem memória guardava. Tinha cinco fábricas, muitos empregados e ninguém a quem obedecer. Era feliz, oh, se era. Casara com Carolina, romance urdido a cartas de água mole. Viajavam com os filhos, netos a caminho, quatro filhos. Manuel escutava, cada palavra como bala em moribundo. Inconformado. Abriu a mão esquerda, olhou as linhas do destino. Ali estavam. O tempo passara por elas inclemente, já nem elas as mesmas. Não as reconhecia, não se reconhecia. Desistia-se. O seu destino a outro coubera. Ele não tinha nada, nem vida. Apenas sombra.