terça-feira, 21 de abril de 2009


Angola, Terra Prometida


Esta quinta-feira (dia 23 de Abril) começa a ser distribuído o meu livro sobre a vida em Angola nos anos 50, 60 e 70.

Foca-se nas vivências da chamada cidade de asfalto, mas não esquece que a esmagadora maioria da população estava alheada dessa redoma.

Recolhe as memórias de quem viveu essa época. As histórias dos muitos portugueses que lá viveram os seus "melhores anos". Viaja a uma Angola que já não existe.

Espero que gostem!!!!!

quinta-feira, 2 de abril de 2009

ESTRANHO MEU

Ela disse-lhe nunca mais, ele respondeu-lhe para siempre. Foi assim. Conversa de cama em plena rua. O universo em duas frases. Era Outono, dia de folhas amarelas (noite talvez). Promessa de hora quente, na chuva miudinha da banalidade. Ficou a memória, fica sempre um rasto, moinha de dor de dentes, ainda as mãos entrelaçadas, perder o que se deseja. Ela recorda agora. Passaram quantos anos (terão sido apenas meses?). Anda perdida do tempo, falta-lhe relógio para medir as estações. Não conta os dias, nem risquinhos na parede nem grades na janela. A sua prisão é outra, vê-los voar e não alcançar nenhum igual. Qual aquele, ela e ele pela primeira vez, última, tão única. Pode ter sido a qualquer instante (dia talvez), não sabe, pouco importa. Pensa que havia estrelas no céu, quase jura, mas podia ser somente o cintilar dos seus olhos, veres que se querem, quase figas. Não se lembra, diz que é de noite, é sempre assim, todos dizem (até os filmes) que o sexo nasce à sombra dos dias. Coisa de lua. Mas havia sol, pelo menos luminosidade, qualquer coisa de alumiar, ver melhor, aperceber-se e estremecer. Um raio. O desejo tem gambiarra, é capaz de ser isso, talvez.

Que estranho, era para ser sexo. Apenas sexo. Que tonta, ela. Bom sexo, quer dizer, no cume do perfeito, nunca é apenas, mas espécie que paira sobre fazer amor, voos rasantes a encore. Pois. Agora ela cerra as pálpebras (bem pode fazê-lo), sacode as melenas, aquele seu jeito de as puxar de mansinho para as traseiras da orelha esquerda. Era Outono, estava frio e ela tossia. À socapa, boca por entre as mãos, boca para trás das costas. Fazia assim, lume-brando, quando a ansiedade, borbulhar no confim da alma, lhe trespassava a razão. E ele ria-se, dos seus pudores, de si mesmo, deles. E ela acompanhava-o, zombar do umbigo é charme de primeira edição. Olhavam-se então, ele inspirava, suspirava-se, desesperava-se. Ai, futuro à espreita; ai, amanhã algum. Nas ruas de Lisboa, algures entre o Tejo e a Sé. Agora ela lembra-se, tudo como se fosse há pouco. Mais ainda os lábios, a boca tão dele. Mas foi há tanto. Amparo por inteiro, os lábios, o inferior bravo a mordiscar, aluar. Descobrir. Sim, gostava dos seus lábios. Beijá-los e beijarem-se. Gostava do modo como se fundiam, como se enfrentavam, isto é, dançavam. Havia um travo, um sabor, qualquer coisa de inusitado, sorver, um aroma, não doce, tragar, uma vontade, tão doce. Como mercearia.

A do chão de sua avó, dela, bisavó também, lugarejo de mil gentes e loja vende-de-tudo lá para as bandas da muralha. Sombrinhas de chocolate aguardavam bocas pequenas, junto à caixa registradora, mentira, isso era invenção por ter, ao papel manteiga e ao lápis de carvão. A dona chamava-se Clotilde, gorda falava numa aura de chouriço. Tinha sempre, às vezes oferecia, “tome lá” atirado à freguesia, uma tábua de madeira com pão de trigo e enchido fumado. Aos nacos, pedacinhos de gula. Queimava o dia a lançá-los para a boca, mastigar, engolir. Dentes amarelados, cáries por certo, melenas na bengala dos ganchos. Pernas branco pálido, às escamas e nem escaladas. A última meada da combinação de esguelha, sempre a espreitar por baixo da saia, renda cor-de-rosa a enganchar-se nas farripas de madeira das caixas de fruta, rebeldes que nem cabelo de traquina a pente três cortado. Oferecia o que tinha a quem cruzava o umbral de sua porta, velhas de carteirinha na mão e miúdos enviados aos mandados. Porquê a merceeira agora? Ela engasga-se no mofo da memória, tosse de novo, relembra-se a olhar Clotilde pelo canto da curiosidade, estender a mão à demasia e à rodela de chouriço. (Gostava de caminhar à borralha com a sombrinha de chocolate.) Estava na idade dos primeiros arroubos, ela, porquês emudecidos, dúvidas de não perguntar, proibido ruborizar a mãe, e vontade de esclarecer

- Mamã, tu também fazes sexo?

Fio de voz desengonçado nas hormonas. Já não crer na trouxa da cegonha, olhar para uns e outros e pensar nisto, mentira, “naquilo”. Sim, na idade do descobrir, matutar em sexo era ter a ideia “naquilo”. Ela já nem pequena nem grande ainda, Média, boneca de olhos de vidro abandonada há pouco, tamanho de rapariga. À tarde, depois de sair da escola, encostava-se ao balcão e, de cabeça “naquilo”, afoitava-se nas luas da merceeira. O marido devia enjoar, escapar-se-lhe no leito, estar farto, antes tombo no chão que beijo, virar as costas de pijama à intimidade de charcutaria. Bah!
Isso foi antes, ela a caminho de hoje. Agora não, já chegou, virou crescida e é mulher. Revive, ela e ele. Quer contar, falar ao ouvido do universo para não magicar outro tanto. Claro. O segredo perdeu o sopro, pôr os problemas na equação dos verbos vale como caminho trilhado para a resolução. Não é soletrar es-tou tris-te e ficar alegre, falta receita, tão-pouco cair no divã ou erguer o pêndulo. Ela recorda-o, a ele, com força, para tentar esquecer, -lo. Aos seus lábios de jasmim e aos beijos longos, sem fim e o fim inevitável. Quanto tempo ficaram juntos? Um instante, nada mais, apenas a vida inteira. Aquela noite de Outono (dia talvez). Os dois a caminharem, horas velozes, um passo a seguir ao outro, suave solto, num só compasso. A velejarem pelas ruas de Lisboa, por eles mesmos, quase “nós” sem destino. A noite pairava fria, nem lua cheia para aquecer. Não se encontrava vivalma, ninguém para os olhar, apontar o indicador e adivinhar

- Estão condenados

Acharam-se na Praça do Comércio, sob o Arco da Rua Augusta, magotes de trabalhadores a correrem para o cacilheiro, velhinha enlutada a tocar ferrinhos, voz a fazer de Severa. Sabiam ao que iam, cumprir o desejo. Esperavam há meses, dois ou assim, quem sabe se cinco, por aquela redenção. Mas isso não pesava, antes embalava. À sua maneira, ela sentia que era tempo baptizado, morno arrastar dos preliminares. Algo semelhante. Como comer uma torrada e guardar a fatia do meio para o fim. Não se conheciam, nunca se haviam cruzado, em nenhum lugar os dois ao mesmo troar, em paralelo algum juntos. Por pouco, juro que por quase nada, somente por uma nesga não se encontraram antes, ela a partir de uma esquina do mundo e ele a chegar.
Mas soava a hora. A tal. A agonia da felicidade agendada a correr mais veloz do que a brisa morna da cidade, ela e ele em direcção ao que desejavam, os dois no mesmo pedaço de mapa, quase a verem-se, tocarem-se (despirem-se, sim, queriam tanto). A imaginação é ventre de parir perfeição e eles concebiam há meses, agora aguardavam o céu, o mundo a seus pés, os dela sob os dele, ao de leve, num passo de Bolshoi, sapatilhas de pontas. Não era amor, nada disso, mais vontade somente de acariciar, debicar o corpo que o mistério tornara idílico. Enfim, talvez amor a prazo curto. Dele, nem uma fotografia ela alguma vez vira. E se fosse feio? Não seria. Tudo menos bigode, pêlos que arranham, moda de guarda republicano à mesa de marisqueira (palitar o canino é que não). Era mexicano, sim, isso era um sinal, bom e papas de mel, não teria Amor de Mãe tatuado no braço, a agulha de marcar soldadinhos de carne.

Não o vira, intuía-o. Na cama, a horas de o encontrar, a sonhar tê-lo ali, debaixo dos lençóis, luz acesa para lhe descobrir o rosto. Algo lhe sussurrava, talvez só o seu querer, que a curva do ombro dele tinha o exacto espaço da sua cabeça. E. A intumescência, pois. (Para quê enganar? Passara a noite inteira a imaginar esse momento, milagre em gerúndio, a acontecer ardente) sim, seria o aconchego perfeito do seu prazer. Primeiro, sob as calças (seriam de ganga?), a braguilha (provavelmente, botões) a caminho de crescente, prenúncio de explosão. Depois, as mãos dela, sentidos alerta. A esquerda a descobrir-lhe o vale do pescoço, os lábios num beijo andarilho a aventurarem-se pelo peito (tomara que não seja peludo). A direita sem freio, cuidadosamente a desapertar-lhe o cinto, a livrar o couro da presilha. A seguir, devagar, por entre um sorriso e um olhar, a desembaraçar-se, a desembaraçá-lo dos botões (quem sabe, braguilha). E ele mais livre, passadeira estendida a aliviar(em)-se. A mão a descer suave, tocar pela primeira vez, apalpar e perceber a excitação (tomara que seja bonito). O sexo é como o resto, presa fácil do conceito de belo, bem-haja haver gostos para todos. E ela tinha o seu, preferência ganha ao girar dos amantes. Apenas ao toque das falanges podia dissertar sobre o sexo alheio, perceber se iria acariciá-lo com os lábios ou dedicar-lhe simplesmente os cuidados básicos. Como no centro de saúde do bairro, tratamento primário para acudir uma emergência, ficar melhor e correr para casa. Basta. Não quis fantasiar mais, nem outro afago. Chega. Bulia-lhe com a insónia, na véspera de o conhecer, traçá-lo com destempero de mulher em jantar de amigas. Sim, pensam nisso, no tamanho do sexo de quem se quer, às vezes. Melhor arrefecer, suspirar fundo, dar uma volta no travesseiro e adormecer de lado, mãos a apararem o pensamento.

Mas a história vem de antes, ponteiros antes do encontro. Vem de um acaso, ponto de partida do universo. Ele dormira na sua cama, diz que gostou dos lençóis, deve ter inspirado o cheiro dela, qualquer coisa forte, não sei a que cheira ela. Nem entendo de enologia, clamar frutado, acenar com o rosto, franzir o nariz e prosseguir, tem maçã, frutos do bosque, baunilha. O fragor dela pregado aos lençóis, à almofada, à cama inteira. Espalhado por cada palmo de sofá, pelo tapete claro da sala, a trepar paredes, a invadir o espelho do quarto, do hall. Foi por isso que se quiseram ver, conhecer. Um médico, houvesse aqui algum, saberia explicar, teoria com direito a poltrona numa conferência, palmas de colegas ensonados, feromonas a expiarem mea culpa. Falta uma coisa. Ele achava que havia química, coisa difícil de explicar quanto mais de entender, algo entre eles. Viveu na sua casa, mundo de uma estranha, durante semana e meia. Um amigo comum passou-lhe as chaves para a mão, o endereço e a suspeita

- Vais adorar, só é pena não conheceres a dona. É de ficar doido

Os amigos limam sempre as arestas da biografia. Ele nunca estivera em Lisboa, era a sua primeira vez. O Verão derramava-se sobre as colinas e os decotes das mulheres. Ele recebeu as chaves, apanhou um táxi e despejou o endereço

- Cerca de Barrio Alto

Ela estava longe, de casa e das chaves de nela se embrenhar, andava pelas margens de África, os dias empenhados no trabalho. Antes de partir, dissera sim a um amigo, claro que não se importava de emprestar a casa “ao mexicano”. A sua, no centro de Lisboa, cais eleito para desvendar a cidade. Arrancara tão à pressa, ainda fechar a mala e o táxi lá em baixo a buzinar, pi-pi

- Minha senhora, vamos lá embora

pi-pi, que lhe faltaram minutos para arrumar a sala, estranhar a importância de receber um estranho. E ele, que terá pensado ao chegar? Ele, “o mexicano”, em casa dela. Domar a manha da fechadura do prédio, passo, subir as escadas de madeira, passo, ranger de boas-vindas, passo, alcançar a porta, olhar para trás desconfiado, confirmar que nenhum vizinho o confunde com ladrão, enfiar a chave na fechadura, rodá-la devagar, o estalido do trinco, prenúncio de aventura. Passo. O que terá sentido? Abrir a porta e dar de caras com outra pátria. O móvel da sala e as fotografias nele pousadas. Fronteiras de uma estranha. Ela pequena, mal das amígdalas, num fato de gato. Ela grande, mochila a abarrotar, na Birmânia. Vê-la e adivinhá-la. Entranhar a importância de ali estar. Ele era mais velho, década no mínimo, pouco importa, o repertório do desejo não olha a primeiro choro.

E agora, neste momento, ela a imaginá-lo. Não sabe o seu nome, apenas a pasta com que escova os dentes. Elixir branqueador, travo a hortelã, indicações em francês. Basta-lhe. Por certo, ele passou por Paris antes de desembarcar em Lisboa, hálito de merceeira nem arma o que é. Sabia mais um punhado de coisas, ela, traços de um retrato vago, coisas simples, daquelas de não dar atenção, como se não fossem as mais importantes. Por exemplo, bebia vinho tinto, bom, segredaram-lhe os rótulos das garrafas vazias, meticulosamente arrumadas junto ao frigorífico. Sofisticado. Baixava a tampa da sanita. Altruísta. Fora ao cinema, sentara-se em frente à tela e rira (será?) a ver Hugh Grant gingar à Elvis Presley, prazer à vista num bilhete esquecido. Puro. Todas as manhãs, ele passava os olhos por dois jornais, um matutino português, qualquer um, e o El Pais. Viajante. Passara o umbral dos cinquenta, talvez começasse a afastar a página, notícias a dois palmos, algo abaixo do olhar, para ver melhor. O gesto, profecia certa das reviravoltas de cama, noites sem sono. Ele estava, devia andar, afastado já de olimpíadas, uma e outra vez, mas não ainda de aluamentos. Sim, ela acreditava, o que lhe faltasse em fôlego sobraria em imaginação. (Mas, e se. A lei da compensação, essa mesma, não passasse de mais um dos mitos que os vividos apregoam e as miúdas apanham como doença venérea?)

Cura, indo eu, indo eu a caminho de Viseu. Ele na cabeça dela era ele no corpo dela. Encontrei o meu amor! E o beijo, lábios de carmim. Tropeça na espiral, a lembrança agarra-a. Ai Jesus, que lá vou eu! O vizinho bem-educado, calças de vinco e óculos na ponta do nariz, a pedir-lhe um ósculo e ela a aprender quantas formas tem um beijo. Mais tarde, o padre lá da terra, batina no roupeiro e livro de ponto na mão, a ensinar as declinações mortas do latim. Ela na sala de aula, pastilhas elásticas cravadas em tampos, a arrebitar. Oh não, piscis cona foderunt, talvez não bem assim, a aprender de repente, tradução à vista, os peixes furaram a rede. Lição que agora não conta. A história, outra volta, regresso aos despojos dele. Coisas dele em casa dela. Largadas. O mais importante, o melhor, aparição, o bilhete, aquele bilhete. Folha de papel deixada em cima da mesa da sala-de-jantar, dobrada em dois, leito de uma flor. Não um ramo, nada disso, tão mais original, um pedaço do arbusto, coincidência, daquele que ela plantava em pequena nas traseiras de casa, sementeira a pá de praia aberta, planta esguia, a lembrar a da pimenta. Ele ofereceu-lhe, deixou para ela o que lhe parecia ser deles, uma meada de flor-de-castidade, branca bonita. O que quereria dizer? O papel, o trilho da resposta em celulose sem linhas, nem um obrigado pela hospedagem, nem um agradeço muito, o destino

- Cuidado. A vida pode acontecer a quem empresta a chave de casa a estranhos

Ela leu-lhe ímpeto, sorriu, encostou-se à mesa. Então, com as duas mãos, apertou a missiva junto ao peito. Acto instantâneo. Cheirou-a, releu-a, duas, três, cinco vezes, virou o papel do avesso, encontrou mais

- Para grandes males, grandes cortes

As entrelinhas a desamarrarem-lhe a curiosidade, amálgama de fé e esperança a picotar. Como pulga a tingir o caminho das estrelas na barriga de alguém. Não acreditava, sentia que é o que mais soma. Ele ainda ali. Mexicano que nunca vira, a sentar-se na sua cadeira de balouço, a ouvir as suas canções, a passar os dedos morenos pelas páginas dos seus livros preferidos, quem sabe demorar-se nas notas encavalitadas nos parágrafos, letra a lápis esmiuçada. Talvez estivesse cansada, ela, vulnerável, só assim se entende, ou pode tentar, que as frases, aquelas, lhe tenham tocado que nem meteorito a terra. Chegara de viagem, horas apertada num assento de turística, as pernas acabrunhadas, estava afadigada. Pegou no bilhete e avançou para o quarto, deitou-se, uma almofada sob a outra, a cabeça no monte de ambas, e o bilhete a sussurrar-lhe firme

- Cuidado. A vida pode acontecer a quem empresta a chave de casa a estranhos.

Nessa noite, adormeceu a sonhar, vaguear no estranho e embater noutros dias. À mesma hora, ele aterrava no México. É cirurgião, pergaminhos no quadro de honra do país. O telemóvel a tocar sem parar, mensagens envelhecidas, convites para palanques, champanhe, mesas de operação, bisturi. Os filhos. A mulher, ex-mulher, como saber. O irmão e a filha dele, sua sobrinha. E ela? Nada, nem um olá. Mas como? Não a conhecia, que fazer, as meninas (sim, as mães ensinam essas coisas às filhas) aprendem a não falar com estranhos, mas ele jurava-a rebelde, talvez não se enganasse, erro foi não deixar contacto. A distância a avolumar-se e com ela o mistério. Arrastavam-se os dias, as semanas e dois estranhos, uma mulher e um homem, em continentes diferentes, nas esquinas dos afazeres a imaginarem-se juntos. Ela a ler e a reler o bilhete, a adivinhar-lhe o sorriso de dentes brancos, mordidas mansas na orelha. Ir dançar e fantasiar-se nos braços dele, encontrar o amigo e fazer conversa, o mexicano, render-se a pontos de interrogação vestidos de indiferença. E ele. Na sua cidade, Mérida, a sentir-se um estranho. Chegar a casa, abrir a porta, a vida toda lá dentro e ele sem lá se rever, entrar, olhar e não a ver, nem de gato nem de turista. Fechar a porta, avançar e tomar assento na praça. Escolher lugar à sombra, crianças em uniforme de colégio a brincar na relva, sentar-se. Ele numa cadeira confidente, jornal aberto para lugar vazio, ele a vê-la ali, olhá-la nos olhos e confessar

- Te quiero

O tempo a escorrer, meses fulminados no calendário de duas cozinhas. E um dia. Estava calor, ele a cumprir o que defendia de mãos arreadas nos suspensórios, “para grandes males, grandes cortes”, moral de cirurgião. E ela em casa, a receber a surpresa, “para mim?” estremunhado ao carteiro. A delirar. O pedaço de um ramo, desta feita lilás, tão belo, a livrá-la da insónia da espera, longa, a devolvê-la por inteiro, súbito. Assombrada, sem segundo para se recompor, apanhar os cacos do seu espanto e abrir o envelope. Isso. Puxar e descolar a cola, nada disso, lancetar de uma agonia, os dedos trémulos como em instante de sacar camisa-de-vénus do leito de plástico (não plástico, outra coisa, foge-me o nome), cuidado para não rasgar. Camisa de amor, fazer amor, que bonito. Não, pivete a látex, colete de fazer sexo, Sim, chamar os bois pelos nomes. E ela em frente ao carteiro, muda, agarrada ao sobrescrito. Novo bilhete, ataviado em presságio. Tinha a janela da sala de par em par, entrava o fresco e os acordes de um forró, saudades de imigrante. Sem adeus, ela a fechar a porta no nariz rosado do carteiro. Abre a carta. A caligrafia dele, a mesma, só a tinta diferente, toque de outra caneta. Tanto tempo, meses cruzados a sonhar com um estranho, a idealizar o encontro perfeito, a primeira impressão parida e criada na lonjura do desconhecimento. E agora, agora as letras

- Amanhã, três badaladas depois da hora do chá, sob o Arco da Rua Augusta

Ele no avião, rota inversa, os pacientes no hospital à sua espera e ele nem cancelar amanhos de bisturi. A mulher, ex-mulher, os filhos, o parceiro de ténis, o mundo desfeito a telefonar e ele a desligar. Que se dane. Grande corte para alcançar maior bem.

A espera a terminar, a tardar mais ainda, os dois suspensos no mistério, quase a conhecerem-se e receio da realidade. Como crer? Avançar para o encontro, cruzar as ruas da Baixa, olhos cegos à confusão, beijaria bem?, cheirar os pulsos e colocar novo sopro de perfume, braços de refúgio?, avançar. Chegar perto, o estômago num desassossego, continuar ou esquecer. Respirar fundo, ajeitar o cabelo atrás da orelha, ir. Encontrarem-se. Era Outono, castanhas assadas e casacos apertados. Ela a caminhar para ele, a ideia mais ousada. Vestira uma lingerie nova, esperavam-se. E então. A imaginação indiferente, ela a criá-lo, de novo a pensar-se nos braços dele, logo ela que nem dada era a matutar “naquilo”, agora, quer dizer, desde que o descobrira, a pouco pensar noutros prazeres. Não dormira com muitos homens, os bastantes para conhecer pequenas leis. Do corpo deles e deles nela. Agora ria-se de pormenores, como ouvi-los tratar o sexo por outra gente. Baptizá-lo de Animal ou inspirar-se no jardim zoológico ou na banda desenhada - Leão, Mickey, Tigre, Batman, Tubarão. Deteve-se, pés em calçada portuguesa, preta. Estava sob o Arco da Rua Augusta, tudo ou nada. A imaginação a perder espaço e ela a perder o pé. Agarrar o momento, conhecê-lo, a ele, ou ficar com o que dele já tinha. Não lhe conhecia o rosto, como descobri-lo por entre a bruma que seguia para o cacilheiro, casa. Avança, olha em redor. Espera, minutos em fila indiana, os saltos altos a torturarem-lhe o mover. De repente, um toque. No ombro, pluma quente. A ansiedade a abocanhá-la. Ela a rodar sobre o calcanhar, devagar. O mundo quedo, inspirar espanto. Ergue o queixo, olha-o, olham-se

- Hola
- És tu?

É ele. Treme e sorri. Segura-lhe a mão, silêncio, abraçam-se, pode ser que uma lágrima. São velhos conhecidos, a ponte da distância é a sua casa. Ela sabe disso, tem medo. Ele também. Entrelaçam os dedos e, em silêncio como velhos amantes, partem pela cidade. Caminham todo o dia (toda a noite?), a felicidade a bordar-lhes o sorriso que não cede. E uma vontade a empurrá-los, formigueiro nas carnes, livrarem-se das roupas e acolchetarem os corpos nus. Andam, um passo e ainda outro, notas em pauta. Sem palavra, falar de quê quando tudo está dito? Revelam-se. Depois (a que horas?) detêm-se à porta de uma pensão. “Ninho das Águias”, na Costa do Castelo. É bonita, alguns quartos oferecem vista, o colchão é confortável, cheira a lavanda. Ficaram à porta, eles. Era a mais estranha de todas as suas noites, doce. De repente, ela não sabe, escapa-lhe a memória, como foi, vá-se lá saber, foi assim, ao que iam a começar a cumprir-se.

Duas bocas que se esperavam, beijo agendado. Tocam-se, lábios num samba. Quanto tempo? Alvorada já. Continuam na rua, a dois passos da porta e das escadas que conduzem aos quartos. Pensam esticar o dedo e tocar à campainha, mas a felicidade veste-se de abismo. Paira uma lua quente (sol, talvez), nem âncora nem zarpar. De súbito, unem as pálpebras, um suspiro, afastam-se da porta. É dia. Olham-se de novo, preenche-os uma humidade mágica, certeza de vida como rejubilar num orgasmo. Ela recua dois passos, ele segue-lhe o instinto. Não se atrevem a avançar, antes conservar a história, a deles, dois estranhos que se querem, ficar pelo perfeição do mistério.

Agora ela recorda, isso tudo e mais um pouco. Traz os lábios dele impregnados nos seus, lembra-se como se ainda fosse. Todo o sexo naquele beijo. Ósculo, vizinho de calças engomadas. O seu corpo, tocar à campainha, mergulhar na lavanda e percorrê-lo de Norte a Sul. Mas não. Dois passos para trás. Um sorriso. As mãos num único adeus. Último. Metro de calçada e gente apressada a separá-los, muro de cobardia, medo de arriscar e perder. À distância, ela a dizer-lhe nunca mais e ele a responder-lhe para siempre. Como se o desejo fosse um lugar onde se pode estar, onde se pode ser feliz. Talvez lágrimas, tudo se confunde já. O arrependimento bate agora, maçaneta em porta trancada. Ela sou eu.