António Calvário
O encontro estava marcado para as duas e meia da tarde, no Café Império, em Lisboa. Ele chegou antes da hora, a tempo de tomar uma água e encher o ego. Na parede, ao lado de outras antigas estrelas, encontram-se duas fotos suas no auge do sucesso. Quando as fãs lhe rasgavam a camisa e só saía de casa sob escolta policial. Foi ele quem, num misto de nostalgia e sentido prático, escolheu o local da entrevista. Morou 30 anos a dois passos do velho café, já por lá muito cantou e, em breve, espera repetir o feito. Além disso, agora que tem casa na outra margem, sempre que vem à capital estaciona o seu Renault por ali. Conhece a zona como o seu repertório e, à conta dos “vândalos” terem estragado os parquímetros, lá poupa umas moedas. Soa a hora agendada, Calvário desce as escadas e escolhe uma mesa longe de olhares. A cada passo deixa um rasto de perfume e um sorriso. Senta-se. Mais uma água e as canções dos Abba a embalarem a conversa. À beira de completar 50 anos de carreira, o primeiro artista a representar Portugal na Eurovisão, suspira pelas coroas de Rei da Rádio, pelos dias áureos da revista e sonha entrar numa telenovela. Aos 68 anos, António Calvário continua solteiro e louro rapaz. Ainda incendeia um clube de fãs, todas elas avozinhas. Ah, “Mocidade, Mocidade”!
Um homem com o cabelo pintado de louro é um homem “à Calvário”. Foi você que ditou a moda?
Eu fui um bebé e um adolescente louro. Sai à minha mãe, que era uma senhora de olhos verdes e muito loura, o contrário do meu pai que era moreno e tinha um ar mais árabe. Por volta dos 20 anos, o cabelo começou a escurecer. Estava a tornar-me famoso e como queria continuar a ser louro, comecei a pintá-lo. E, olhe, pinto até hoje. Bem, agora também por causa de uns cabelitos brancos. Se calhar, fui mesmo eu que comecei com isto.
Pinta o cabelo em casa?
Em casa ou no salão, tenho técnicas de fazer inveja a qualquer cabeleireiro. Quando as raízes começam a ficar brancas, aplico a tinta com o cabo de uma escova de dentes velha. É melhor do que qualquer pincel, fica uma maravilha! Tenho muitos anos de prática, às vezes, até digo às cabeleireiras que pinto melhor do que elas.
E qual é a cor António Calvário?
É o louro normal, o rótulo só diz louro.
António Calvário da Paz é um nome mais do que religioso...
Ainda eram para me pôr outro nome santificado, estive para ser António Calvário Sacramento da Paz. Depois lá acharam que era demais (risos), mas eu gosto.
Nem precisou de inventar nome artístico.
Pois não. Calvário é uma palavra aberta e os nomes artísticos devem ter uma palavra sonante.
No próximo ano cumpre meio século de carreira. Qual o balanço que faz?
Positivo. É uma carreira longa. Aos 19 anos tornei-me muito, mas muito conhecido. Foi com uma canção popular, “Regresso”, num festival organizado pela Emissora Nacional. Nestes 50 anos, tenho a felicidade de nunca me ter tornado uma pessoa desconhecida do público. Ficar é difícil.
É um artista deste tempo?
Também, por que não? Continuo a ser muito reconhecido pelo meu passado. Em termos musicais, o que sou hoje tem muito a ver com o que fui nos anos 60, mas há uma evolução. Na minha época, o mundo era outro – não havia nada das tecnologias que há hoje.
As pessoas continuam a meter-se consigo na rua?
Ah sim, pedem autógrafos. Nos supermercados e na rua vejo que as pessoas me reconhecem e isso dá-me uma grande felicidade.
Sente-se uma das grandes vedetas da década de 60?
Isso é o que os outros dizem, eu não posso dizer que sou ou fui vedeta. Ponham os rótulos que quiserem, desde que não sejam muito maus. Quando isso acontece, fico triste.
Qual foi o pior que lhe puseram?
Olhe, ainda há pouco tempo, uma revista fez-me uma entrevista e pôs como título: “O avô pimba”. Não gostei nada daquilo, não sou nem nunca fui pimba.
Nos anos de maior sucesso, como é que conseguia andar na rua?
Era impossível! Só à noite é que conseguia sair à-vontade, ia até às boîtes (agora chamam-lhes discotecas, mas para mim isso é uma loja de discos).
É verdade que não podia ir do Rossio até ao Chiado?
É pois! As pessoas gritavam “é o Calvário, é o Calvário!”, era uma loucura. Se estava anunciada a estreia de um filme no Cinema Ódeon, o trânsito nos Restauradores tinha de ser cortado e eu tinha de sair de casa acompanhado por polícias de motorizada!
Isso é à estrela de Hollywood.
Era desse género, era. No Porto, ficava no Hotel Batalha, nem imagina o que era aquela praça cheia de gente!
Como é que viveu esses momentos?
Era uma sensação estranha, mas de satisfação. Bem sei que toda essa euforia e maneira de estar do público era fruto da época, veja-se o que acontecia com os Beatles... Eu tinha esse problema à escala do meu país.
Sente falta dessa popularidade?
O público continua a acorrer aos meus espectáculos e a acolher-me bem. A forma eufórica de reagir na rua é que é diferente do que era.
Conte-me uma histórias dessa época.
Quando me anunciavam era uma loucura! Uma vez, na gravação do programa “Festival”, houve uma pessoa que para me ver se debruçou de tal maneira no balcão, que caiu e veio parar à plateia. Não se magoou, teve a sorte de cair em cima da multidão. Outra vez, à porta de um espectáculo, era tanta gente que o motorista passou por cima do pé de uma admiradora. Coitada, eu não acho piada a estas coisas. Às vezes, rasgavam-me a camisa, chegava aos sítios todo desgargalado. Vá lá, ser só isso... (risos)
Coisas de quem tinha um séquito de fãs.
Até tinha um clube! Hoje, mantenho um bom relacionamento com as meninas dessa época, agora já avós. Passei a ser visita de casa de algumas.
Guarda muitas cartas?
Ainda tenho milhares, as que o meu pai guardou. Eu recebia centenas por dia e não tinha tempo de abrir todas. Sabia que perdi muito trabalho por causa disso? Os contratos para espectáculos eram por carta e eu, às vezes, quando abria a proposta já a data tinha passado. Então, o meu pai que já estava reformado, começou a entreter-se a abrir as cartas do filho. Tenho montões, caixas cheias...
Era um arrasa corações.
Sim, muitas eram declarações de amor. Havia também ameaças, “se não se encontrar comigo é porque não gosta de mulheres”. E todas traziam um pedido de fotografia autografada.
O que não lhe faltavam eram pretendentes.
Sim, sim e ainda hoje existem! Calcule só, se não fui casado oficialmente, o número de casamentos que fui tendo... E continuo a casar de vez em quando, é mais interessante. Além disso, acho que casei com o meu público. Naquela altura, ser casado tirava-nos fãs, elas perdiam aquela ilusão de um dia...
É verdade que lhe gritavam “não cases, não cases”?
Aconteceu, pois! Então quando se disse que eu ia casar com a Madalena Iglésias que era, de facto, uma pessoa com quem eu acompanhava muito, chegaram-me a pedir de joelhos!
E esteve mesmo para casar com ela?
Ah... isso não respondo. Tínhamos uma amizade muito grande, não quer dizer que não pudesse acontecer...
Mas alguma vez chegou a pensar a sério em casar?
Não, porque não era bem visto pelas fãs. E é um passo muito sério, eu não cultivo a infelicidade e o que via à minha volta era ciúme, filhos que ficam...
Diz-se que Portugal, na altura, era um país de mulheres feias.
Ah, havia mulheres bonitas. Como hoje. Para mim, o bonito é a parte espiritual. Não se pode ver o casamento como uma meta sexual, como se não houvesse mais nada na vida.
Lamenta não ter tido filhos?
Gostava de ter tido, mas isso ficou resolvido com os meus sobrinhos, criei-os como filhos. E, agora, sou um tio-avô babado. Tenho três.
Que o chamam Ti Tó.
Exacto. Uma delas então está muito agarrada a mim. Chama-se Maria Calvário e tem oito anos.
Costuma ir buscá-la à escola?
Sim, e às vezes, fica a dormir em minha casa.
Recorda-se da sua primeira paixão?
Claro, foi colegial. Mas não digo o nome, já é avó.
Qual foi o momento mais marcante da sua vida?
Tive vários. O primeiro foi quando me tornei conhecido de todos os portugueses, com a canção “Regresso”.
Outro foi a ida à Eurovisão, na Dinamarca, em 1964, não?
Sim, nessa altura já era muito conhecido, já tinha gravado muitos discos e já trabalhava no teatro de revista. Ser o primeiro português a representar Portugal na Eurovisão é um ponto de honra para mim.
O que recorda dessa viagem?
Cheguei lá sozinho nem sequer maestro levei, mas fui muito bem tratado.
Como é que correu a noite do espectáculo? Acabou por não receber qualquer ponto.
Ora agora também poucos recebem. E a situação política não ajudava. Por causa das ditaduras, ninguém queria que Portugal e Espanha lá estivessem. Eu já ia prevenido, tinham-me dito para ter cuidado com os jornalistas.
Fizeram-lhe perguntas embaraçosas?
Ah sim, queriam saber o que é que eu achava da situação. Mas eu respondia ‘desculpe, de política não entendo nada’. E não entendia, como a maior parte das pessoas não estava embrenhado nesses assuntos. Não se falava de nada disso e o tempo que tinha era para estudar e para a música.
A canção que levou à Dinamarca, “Oração”, é um dos seus grandes sucessos.
É verdade, até tive o convite de uma editora francesa, onde gravou a Edith Piaff, para cantar em francês, mas a Valentim de Carvalho que tinha o exclusivo não autorizou. Foi uma pena, perdi muitas oportunidades a nível de estrangeiro.
Enquanto cantor como é que se define?
Sou um cantor versátil. Dentro da área ligeira, canto vários tipos e também foclore e um fado ou outro.
Pode dizer-se que é um cantor romântico?
Essa é a base, mas sou um cantor de sempre. O que canto é imortal.
Chateia-se quando dizem que é uma das vedetas do cançonetismo nacional?
Nunca percebi o que isso é, mas é coisa do alguém da má-vontade. A única verdade é o nacional, de facto, sou um produto nacional. Bem, e também sou cançonetista, mas usam essa expressão com um sentido depreciativo.
Recorda-se do dia da revolução?
Estava no Porto a estrear uma revista. Só esteve em cena uma semana, com o 25 de Abril o texto ficou todo desactualizado. Tinha-me deitado muito tarde e acordei com um telefonema da minha mãe a anunciar o que se passava. Sai logo para a rua, estava um lindo dia de calor.
Depois do 25 de Abril, passou um mau bocado. Como foi ser conotado com o Salazarismo?
É outra coisa que nunca entendi. Então, e a Amália também era do regime? Todas as pessoas que cantavam naquela época estão ligadas da mesma maneira ao regime. Eu cá nunca lhe cantei vivas.
Mas foi prejudicado?
Foi uma injustiça! Agora, toda a gente diz que não teve nada a ver... E os capitães que fizeram a revolução também não vieram do sistema? Como é que adquiriram as patentes? Acho cá uma piada...
Mas o que é que lhe aconteceu?
Ninguém me dava trabalho, tive de começar a cantar em cabarets e sujeitar-me ao que queriam pagar.
Chegou a ser insultado na rua?
Sim, mas não muito.
Vamos até à sua infância?
Vamos. Venho de uma família de algarvios, tive uns pais maravilhosos. Nasci em Lourenço Marques e fui morar para uma cidade a 100 quilómetros. Tive uma infância livre, tínhamos todo o espaço do mundo para brincar.
O seu pai era mecânico, não era?
Ele tinha a especialidade de automóveis e tractores e a minha mãe era doméstica.
Em casa chamavam-lhe Tonecas?
Ainda hoje, mas é um exclusivo da família.
Em Moçambique, ia ao cinema?
Ia, ia. Era o tempo dos musicais, das grandes estrelas como o Fred Astaire.
O que é que o Tonecas queria ser quando fosse grande?
Nunca fui para grandes cursos, tinha uma loucura pela música. Ouvia Choppin e sonhava ser um pianista como os dos filmes, comecei a tocar aos sete anos. Também quis ser padre, por causa de um padre que conheci em África. Eu não conhecia avôs e ele era de uma ternura tão grande que eu queria ser igual a ele.
Entretanto, aos oito anos vem para Portimão. Que história é essa de trocar uma bicicleta por lições de piano?
Era habitual o meu pai oferecer-me uma prenda pela passagem de ano e eu prescindi da bicicleta ou dos patins a troco das aulas de piano. O canto aparece por acaso e é o que vinga.
Quando é que cantou pela primeira vez?
Aos 15 anos, no externato. O reitor indigitou-me por engano para cantar na festa da escola. Eu fiquei cheio de medo, mas não disse nada, na época tremíamos só de ver o reitor. Cheguei à aula de piano, contei à professora e ela pôs-me a fazer um arranjo vocal. Sai-me tão bem que ela não queria crer que eu nunca tinha cantado. A partir daí, comecei a ter meia aula de piano e meia de canto. Os meus pais fartaram-se de rir, nunca me tinham ouvido cantar e aquilo foi um sucesso.
Pouco depois, vem estudar para Lisboa. Como é que começa a ter aulas com a Corina Freire?
Ela era uma grande artista e era prima da minha avó. Ofereceu-se para me educar na música, mas quando cheguei a casa dela, disse-me que só ensinava canto e eu lá fui.
Os seus pais viam com bons olhos essa sua veia artística?
Não, queriam que fosse advogado. Nem sabiam que a Corina Freire me andava a ensinar.
Atirou mesmo uma moeda ao ar para decidir entre os estudos e o palco?
Atirei, era coroa para um caminho e cara para outro. Sabe, eu acredito no destino.
Então, também acredita na sorte e no azar?
Pode-se dizer isso.
É um homem de sorte ou de azar?
Das duas, a minha grande sorte é ser muito saudável. Em jovem, fumei e bebi muito, por isso, aos 50 quando fui fazer um check-up pensei que o médico me ia receitar uma série de comprimidos, mas disse-me que estava tudo bem. Ainda assim, decidi parar de fumar e de beber.
E o que é que experimentou de drogas?
Na altura, não era como agora. Experimentei charros só para não ser desmancha prazeres.
Certo é que ninguém diz que tem 68 anos.
Uns 40, não? (Risos)
Tem muitos cuidados?
Procuro uma comida à base de cereais, como mais peixe do que carne e faço ginástica.
É supersticioso?
Não. Sou católico, entendo-me é com a parte divina. Benzo-me antes de entrar em palco, peço para não ter lapsos de memória.
Mas é dado a ir à bruxa?
Não, um católico não pode estar ligado a bruxedos. Todas as noites falo com Deus e, antes de me deitar, faço um exame de consciência.
Como é que foi a sua estreia na Emissora Nacional?
Havia muitos programas de estúdio com orquestra. Era tudo muito diferente... cantávamos ao vivo e éramos remunerados. Agora, mal passa música portuguesa.
Qual foi o primeiro cachet que recebeu?
Foi 50 escudos, no programa “Vozes da Rádio”, gravado no Barreiro. Sai de lá eufórico! Ainda era estudante, vivia num quarto em Lisboa, só tinha a mesada dos meus pais. Nunca mais me esqueço... Nessa noite, convidei dois colegas para jantar num restaurante, o “Come e Bebe”, na Rua das Portas de Santo Antão, que tinha um bife óptimo com batatas fritas, ovo a cavalo e custava seis escudos! Uma fortuna! Foi cá uma festa!
Começou então a ganhar mais dinheiro. Aproveitava para dar umas escapadelas a Espanha?
A vida era barata e o escudo valia mais do que a peseta, por isso, íamos lá às compras. A primeira camisa de smoking que vesti era do meu pai, os botões eram trevos de ouro, mas a primeira peça extravagante que comprei foi em Madrid: uma camisa de toureiro. Depois, apliquei-lhe uns folhinhos. Nem imagina o que fui criticado por aparecer com uma camisa com folhos...
Foi várias vezes Rei da Rádio. Como recorda essas coroações?
Era uma maravilha, na época, era a bitola do sucesso.
Em 1962, recebeu o Oscar da Casa da imprensa. Ficou contente por outro dos galardoados ser o Eusébio?
Claro! Foi o primeiro ano e fomos pioneiros. Somos muito amigos.
É benfiquista?
Sou, mas não sou fanático.
Foi difícil lidar com a fama?
Contaram-se muitas histórias falsas, ah, e muitas anedotas. Mas tão ordinárias que não posso contar.
Chegou a pensar desistir de cantar?
Cheguei, sou uma pessoa tímida e não estava preparada para tanta euforia, para ser atirado às feras.
Mas insultavam-no de quê?
Normalmente, os rapazes é que faziam isso. Gostavam muito de arrasar a minha masculinidade e eu não estou preparado para ser maltratado sem justificação, fico muito magoado.
Em 1963, estreia-se no teatro de revista. Gostava de subir a esses palcos?
Muito, é um género de teatro que adoro.
Concorda que está morto?
Não, a revista à portuguesa é muito nossa e devia ser apoiado.
Qual foi a situação mais engraçada que lhe aconteceu em palco?
Numa opereta chamada “Invasão”, no Teatro Trindade, estava eu a cantar quando o cenário se desprendeu e caiu. Era uma casa, eu fiquei enfiado na janela mas continuei a cantar. Houve feridos e tudo! Veio uma ambulância, entraram macas e eu nunca parei. Até recebi um louvor por ter mantido o show. Como era sobre as invasões francesas, o público pensou que tudo fazia parte do espectáculo.
Estamos a falar da época de ouro do Parque Mayer. Como recorda esse espaço?
Era uma loucura, todos os teatros funcionavam. Faz-me muita pena passar por lá agora. Antigamente, havia segurança à noite, estava tudo cheio de guardas-nocturnos, as pessoas não tinham medo de sair. Outros tempos...
Já vi que é um saudosista.
Das coisas boas, sou.
Conte-me uma história desse Parque Mayer.
Uma vez, numa matiné, apareceu uma costureirinha de teatro a dizer-me: “Ai menino, está tanta gente de volta do seu carro que não vai poder sair. Está lá uma rapariga a lavá-lo e a dizer que quer ter um filho do António!” A certa altura, não tive outro remédio senão sair e a tal rapariga agarrou-se a mim a gritar aquelas coisas.
Também devem ter aparecido algumas a dizer que tinham filhos seus, não?
Apareceu-me em casa uma grávida com a tia. Eu tinha acabado de chegar do Canadá, abro a porta e pergunto quem são. A tia começa logo: “Isto não pode ficar assim! Já viu o que fez à minha sobrinha?” A rapariga com uma barriga enorme e eu nem a conhecia. Era fanhosa, ainda me disse: “Ó António, não me digasss que vensss assssim tão essquecido do Canadá?” A tia saiu de lá a dizer que ia à judiciária. Há muito oportunismo...
Também deu cartas no cinema. “Uma Hora de Amor” e “Sarilho de Fraldas”, ambos com Madalena Iglésias, ficaram célebres. Gosta mais de cinema ou de teatro?
São coisas diferente. Hoje em dia, tenho pena de não estar mais activo no cinema.
Mas nem tudo foram rosas. Quando tentou ser produtor, com “O Diabo era Outro”, encheu-se de dívidas.
Porque fui enganado! Tinha 1200 contos, um filme custava uns 700, mas acabou por custar mais de três mil. Foi um desaire, o horror. Para pagar as letras, comecei a cantar em circos.
Chegou a andar em tournée com o filme?
O filme acabava comigo a cantar – eu e a Milú éramos os protagonistas - e eu aparecia ao vivo a cantar. Fiz digressões pelas colónias e aí é que consegui ganhar um reforço de bilheteira.
Qual o seu filme preferido?
“E Tudo o Vento Levou”. Perdi a conta às vezes que o vi.
Só lhe falta fazer telenovelas. Gostava de experimentar?
Estou farto de dizer que adorava, mas ou nunca vai acontecer ou estão à espera que chegue a bisavô para me arranjarem um papelinho.
Gravam-se cada vez mais cenas de sexo. Teria problemas em filmá-las?
Já não está muito indicado para a minha idade, é mais para a pujança da juventude.
Há umas semanas, foi a um programa de televisão, o “Isto só Visto”. Não lhe correu lá muito bem, pois não?
Foi um horror. Quem viu gostou, mas eu acho que podia ter feito melhor.
Das suas canções, qual é a preferida?
Gosto muito da “Mocidade, Mocidade” que marca o meu regresso ao sucesso depois do 25 de Abril. Ainda hoje, faz parte do meu repertório e todo o público sabe a letra, “Oh mocidade, mocidade”. A “Oração” também é muito especial.
Quantos discos gravou?
Nem sei, centenas!
Como vê a música que hoje se faz em Portugal?
Bem, é fruto da época. Mas, salvo algumas excepções, há menos qualidade no aspecto melódico, naquilo que se chama ‘ficar no ouvido’.
É difícil imaginá-lo a ouvir hip-hop ou rap.
Pois, não faz o meu género. Estava a ver o Frank Sinatra, se fosse vivo, a fazer isso?
O que acha dos portugueses cantarem em inglês?
Discordo, mas compreendo. Eu também canto, mas só se estiver numa digressão lá fora, cá não faz sentido.
Como foi participar no “Circo das Celebridades”?
Eu gosto muito de circo, actuei em vários e tenho grandes amigos nas velhas famílias circenses. Por isso, esta experiência do reality show foi óptima. Ainda lá estive quatro semanas, com o José Castelo Branco e a famosa Marta do primeiro Big Brother.
Qual foi o momento mais marcante?
Empenhei-me nos trabalhos artísticos, fiz de ilusionista, domador de cavalos e duas vezes de palhaço, que foi o que mais adorei. Penso que tenho jeito para palhaço. Sempre gostei de palhaços, mas nunca pensei que pudesse vir a representar um.
Não me diga que tirou uma pomba da cartola?
Correu-me bem, não fiz isso mas transformei uma pomba num caniche! (Risos)
Quem é que agora o convida para actuar?
As empresas de espectáculos, continuo a cantar e a sair duas ou três vezes por ano para o estrangeiro.
Gosta da chamada música pimba?
Resolveram rotular assim, não percebo porquê. São musicas divertidas, tudo depende do sítio em que se está. Os próprios universitários quando se querem divertir procuram esse género. Olhe, o Quim Barreiros não tem mãos a medir.
Mas imagina-se a cantar Quim Barreiros?
Não, não. “Oh Mariazinha deixa-me ir à cozinha” não é para mim.
Para o ano, pensa lançar uma autobiografia. Vai ser um livro picante?
Vai ter muitas histórias bonitas, coisas que fui apontando em caderninhos ao longo da vida.
Como é o seu dia-a-dia?
Duas vezes por semana ensaio com a minha banda. Faço ginástica quase todos os dias e passei a gostar de me levantar cedo. Deixei a vida de boémia, mas quando saio ainda é de caixão à cova. Vivo na Aroeira, rodeado pela família.
Recentemente, deu um concerto no Maxime. Que tal foi regressar a esse palco?
Tinha lá actuado nos anos 60, na época de ouro. O público de agora também foi fabuloso e o concerto foi memorável. Espero voltar em Setembro ou em Outubro.
Qual é o seu maior sonho?
Fazer uma telenovela, desde que o papel não me faça cair no ridículo.
Pensa deixar de cantar?
Nunca pensei nisso a sério. Enquanto sentir que tenho voz e público, não deixo. Talvez a meta ideal seja, no máximo, os 75 anos. Mas agora quero apostar na representação.
Ainda o vamos ver num filme sobre a sua vida?
Por que não? Tinham era de arranjar um actor para fazer de Calvário mais jovem. Em tempos, chegou a pensar-se nisso, mas o final era ficção. E era triste, eu acabava na decadência.
Sente que isso lhe pode acontecer?
Tudo pode acontecer, mas agora acho que não. Até estou arrepiado! Começava comigo velho, abandonado num banco de jardim, e uma senhora a oferecer-me uma flor. Eu recebia e lembrava-me dos ramos e das glórias que recebera.
Que triste! É um desiludido da vida?
Não, hoje faria outro final.
Que título lhe daria?
Acho que lhe chamava ‘Canção de uma vida’.
sexta-feira, 27 de março de 2009
segunda-feira, 16 de março de 2009
SORTE MALVADA
Anda às voltas pelo quarto, Levante e Poente. A tijoleira está gasta, tem o molde do seu caminhar - dois pés para lá, dois para cá. Primeiro solas, a seguir elas cremadas no chão. Descalço, barbas a varrerem pó. O quarto tem a sua vida presa. Conta-a. Todos os dias, uns iguais aos outros. Conhece cada metro, cada palmo, cada polegada. Passos sem fim, número 43. A mesma pegada, sempre a mesma, aos 20 anos o corpo encerra o crescer e em 20 anos não enceta o mirrar. Passos. Tempo voado. Agora dá voltas, o destino perdido. Incrédulo. A claridade cega-o. A porta está aberta, dá para a rua. Passam rodas com gente dentro, com gente em cima. Mulheres de saia curta, às cores. Há quanto tempo não via Manuel o mundo?
Há 20 anos, a mãe morreu pela manhã. Desconhecem-se as badaladas do último sopro, a ronda exacta dos ponteiros do relógio da sala. Esguio como ponto de exclamação: “Eu estou aqui e sou dono do teu tempo!”. Ninguém sabe quando morreu, andava para partir há muito. Um inchaço, uma dor, um cansaço – mal sem nome. Terá sofrido, sorrido? Ninguém sabe, ninguém viu. Nem o relógio de vaidades burguesas, oferecido por uma tia velha de que ninguém lembra o rosto. Em quando andaria ele? É dono do tempo, mas não do que cabe nele.
Manuel acordou à hora do costume, galo de crista no ar, silêncio de pernas curtas, sete badaladas. Despertou ansioso, o laço de um presente aguardava os nós dos seus dedos. Era o dia do seu aniversário. Quereres para amanhã desabotoavam-lhe o sorriso. Faltava-lhe um dente, nada que lhe roubasse o encanto. Corpo de celta, olhos adourados como que pincelados, coisa de arte. Esfregou-os, ramelas nas esquinas, afastou as mantas de lã – era Inverno, o frio aturdia – e levantou-se. Não com pressa, tranquilo como acreditava que os homens grandes faziam. Era o seu primeiro despertar de macho feito, faltava-lhe destrinçar a verdade da rotina. Se soubesse que a mãe estava morta, ou que se morria, ter-se-ia levantado de repente, num arroubo, sem sequer passar os dedos pelas pálpebras, menos ainda aguardar uns segundos, sentado na cama e nas ideias. Mas não adivinhava. Tão-pouco que o futuro eram aquelas quatro paredes bolorentas. Nunca mais se ergueria assim. Daí em diante, nas manhãs seguintes, nas manhãs dos próximos 20 anos, arrastar-se-ia na cama até as pernas desmaiarem no formigueiro do “não me movo”.
A mãe morreu antes das sete badaladas. Ou por aí, as carnes ainda quentes ao fumegar da chaleira. Ele fazia anos, 20 anos, virar homem. Esperava na cama, inquieto, vontade de correr até à cozinha, desapertar o nó do avental amarelo que ela nunca tirava, receber um beijo morno e o presente. O presente esperado. Sabia que a mãe amealhava há muito, moedas numa lata de alumínio azul, velho albergue de bolachas a açúcar salpicadas. Há uns anos, depois do desaire, homens de rosto cerrado levaram tudo o que tinham. A única fortuna que sobrou foi o cheiro a café acabado de fazer. E o amor. O amor que os mantinha lado a lado, a caminhar de queixo alto, desde o dia em que o pai se fora. Matara-se, pum! um tiro, morte que pesa a quem fica. Na escola, os miúdos faziam-lhe “pum!” E a verdade: “O meu pai matou-se”. Na rua, as vizinhas olhavam-no E a verdade: “O meu pai tinha dívidas, acobardou-se”. Em casa, a mãe abraçava-o E a verdade: “Estamos sozinhos”. Naquele dia, tudo se tornaria passado, jurava ele. Alcançava duas décadas, idade bastante para pum! fantasma.
Levantou-se da cama, lençol de flanela damasco maduro, tropeçou nos chinelos, correu, bateu a porta do quarto – para trás ficava a máscara de chegar a crescido. Mas na cozinha nada, nem café à sua espera nem avental para descarregar tropelias. Pôs a chaleira ao lume, deu voltas à mesa, dentes numa côdea de ontem. Junto ao saquinho de linho branco, Pão a ponto-cruz bordado, achou qualquer coisa, laço de presente. Um envelope: “Para o meu filho”. Ele. Tivesse pai e a prenda era a água-benta da geração. A todos calhava, de mão-beijada, um certo travo a orquídea em álcool. Uma ida às meninas da Rua da Jeropiga, luz encarnada a indicar a porta, saiotes a amaciarem chão, pares ao ritmo de quadris em calças de cotim. Mas não tinha. E a mãe, mais devota ao terço do que às intempéries do desejo, nunca o deixaria assim soltar os suspensórios. Continuava por chegar a data de Manuel aportar no varandim, cortina de veludo a fazer de porta, descobrir a matrona: “Porte-se benzinho, doutor”. Para que amealhara a mãe?
Meses a fazer bolos, bater ovos com farinha, tirar do forno e vender de casa em casa. No dia dos 20 anos, havia de dar ao filho entrada nos mistérios da vida. Não nas meninas, na bruxa. Antes, mulher de adivinhar. No fundo, e tirado o mote do prazer, ir a umas ou a outra assentava no mesmo. Pôr o destino nas mãos de alguém. A nu. Como se o descobrir fosse uma tentação de onde não se consegue sair. Estava decidida a dar-lhe o futuro de presente. O rapaz, sina na mão áspera, entrou e saiu da cozinha: “Mãe!”. Ela não respondeu, ele deu-a por atarefada na horta. Dar comida às galinhas, cortar ervas e encher o tanque de água. Gelada, graus de enrugar dedos. Ele encolheu os ombros, pegou no envelope embrulhado. Atirou o laço para cima da mesa, toalha com pêras pintadas, fruteira vazia. Leu: “Vale uma consulta na Madame Soledad”. Trazia a morada, dez minutos a caminhar. “Mãe, mãe! Vou lá a correr! Obrigada!” A chaleira a fumegar, os bichos a roerem a madeira do soalho, resposta alguma. “Mãe!” Nada. Demasiado burburinho nele para ouvir o silêncio. Partiu. Passos apressados, um cão no rasto, latidos em vez de banda, manchas castanhas nas orelhas, magreza a pedir ternura.
Dez minutos, cansaço nas pernas. Deteve-se. Duas portas erguiam-se à sua frente. Numa, salivar, cheiro morno de bolo de chocolate; noutra, franzir, odor quente de velas à espera. Manuel, intuição nos pés, aproximou-se da segunda. Nesse instante, a vida a começar (a parar). Quatro dedos de medo na maçaneta da porta, periclitantes. A mão esquerda ali, um minuto, dois, e nada. O cão calara-se, fora-se de orelhas baixas. O rapaz tremia, devia dizer “bom dia”, mas os lábios silenciavam-se. O corpo inteiro no mesmo compasso, nem rodar nem falar. Em frente a uma porta, maré de suor na maçaneta de madeira. Gasta, uma farripa a espetar as carnes. Aquela mulher do outro lado. A senti-lo perto, por ali, a chegar. A levantar-se da cadeira, passos esguios, quatro nem mais nenhum. Abrir a porta, a maçaneta a rodar e ele no corredor sem a conseguir largar. O lenho a cravar-se no monte de Saturno e ele preso à dor do descobrir. A porta a mover-se: “Estou à sua espera”. O rapaz a entrar. Abrir muito os olhos para ver melhor.
Primeiro, uma mancha encarnada. O cabelo dela como rosas desavindas. Depois, os santos, santinhos, imagens de pôr fé, numa prateleira, noutra, no chão, na mesa. Um gato preto a passar, caminhar vaidoso, via-se que capado. Uma mesa redonda e duas cadeiras, almofadas a jurarem conforto. Um lugar para ela e outro para ele. E ali, à vista de ambos, à mão dela, as cartas. Um baralho velho, gasto, o enforcado amarelado. Como se chamava ela? A esticar-lhe a mão: “Entre”. E a mão magra, quase escanzelada, veias prontas a zarparem, branca, muito branca, a indicar-lhe passagem: “Faça favor”. E ele a transpor o umbral, molhado de ansiedade. Os olhos dele presos à mão dela. Não bem à mão, mais ao indicador. Olhava sempre, era o que primeiro via em alguém. O indicador da mão esquerda - sangue de coração, quente até à raia. O dela mais ainda, quase tocava o dedo médio. Ordenava e ele cumpria.
Madame Soledad. Havia qualquer coisa nela que o baralhava. Cartas paradas à espera de lhe encontrarem o futuro. E o indicador a mostrar-lhe a cadeira: “Sente-se”. Sentou-se. Calado de medo. Rosto quente, desatino escalda. O indicador dela como pêndulo, ele a entregar-lhe o pensamento. O dedo vestido de anéis, pechisbeque a valer ouro, plástico a encarnar rubi. E a unha encarnada, afiada, a despontar como varinha de condão. E ele sem nenhum, um vazio no lugar do indicador. Nasceu assim, sabe-se lá porquê, desdado. A mãe bem lhe dizia, à noite, antes de arrumar as agulhas de bordar num saquinho, em tempos de alfazema: “Ai rapaz, estás fadado a não encontrar destino”. Desatino queima. Também por isso lhe oferecera aquele presente - cartas na manga para emendar a natureza.
Quantas vezes reviveria aquele momento? Todas as horas, todos os dias, todos os anos daqueles 20 anos. Encurvado na cama como bicho acossado, às voltas como ponteiro sem Norte. Fechado em quatro paredes. Elas bolorentas e ele também. Morto, à espera da vida. Nos primeiros meses, talvez ainda nos primeiros anos, o relógio da sala continuou a anunciar o escorrer das horas. Badaladas, presente a engolir futuro, badaladas. Depois, calou-se. Acabou-se a pilha, cansou-se de não ter em quem mandar no tempo. E ele deixou de o ouvir. Pouco se importou, o seu único ponteiro era mesmo o prato de comida. Um prato de servir sopa, esmalte branco e rebordo azul, coberto com um paninho bordado. Para não arrefecer, para limpar os lábios. Todos os finais de tarde, duas pancadas de punho cerrado na porta do quarto, tum-tum, a chave a rodar de mansinho, nem uma palavra, uma nesga de claridade, o prato no chão. Ele a apanhá-lo, a comer, mais um risco na parede, mais um dia desperdiçado. (Gostava de bacalhau com grão, espinhas guardadas para traçar calendário.) Às vezes, a cabeleireira encarnada daquela mulher tomava-lhe de assalto o olhar marejado. Espinhos: “Vai chegar a casa e encontrar um grande desaire”. A visão dela imbuída no retrato da mãe. Deitada na cama, morta ao amanhecer. Acertara na desgraça como não acertar no resto? Pensava nisto, via e revia o indicador de ourivesaria, unha a indicar marcha. Aquietava-se. Sem saber se dia se noite, quedo. E credo. Mas isso foi depois de a conhecer.
Havia velas espalhadas pela sala da mulher. Manuel revolvia-se na cadeira. Ela olhava-o sem verbo. Percebeu que era canhoto, pediu-lhe a mão esquerda. Decifrar que rumo seguiam seus dias. Ele avançou, tanto medo quanto à porta. Ao toque, ao primeiro toque, sentiu uma claridade (surpresa talvez) trespassar-lhe o peito. Algo estranho, nunca assim sentira. Nem quando se aventurara a cruzar a Rua da Jeropiga, carnes de mulher na esquina, nem sequer ao pousar a sua, na mão de Carolina. Na festa da terra, acordes de gaiteiros e ruído de cadeirinhas em círculo. Aquela mulher atordoava-o. Bruxa, adivinha. Talvez a insensatez do dedo dela, o cabelo não, talvez o ardor do olhar vazio, sem sombra de alegria ou de tristeza. De repente, ela sugou-o ao pensamento. O seu dedo percorria-lhe a mão como vento. Amainou, chamou-o pelo nome. Manuel. A mãe podia (devia) ter feito as apresentações, não se espantou. “É um homem de sorte.” Ele gostou daquelas palavras. Na verdade, era um poço onde corria a água turva da crença. Acreditava em Deus, em tudo o que fosse maior do que ele. E isso era, em pequeno, o relógio da sala. Em grande, o raio que fulminara a árvore do quintal. A igreja ao domingo, dormitar no sermão e nas velinhas. E era aquela mulher. Aprendera a crer no regaço da mãe, cedo entendera que a fé é o respirar dos infelizes. Dança de pulmões, para baixo e para cima. Ela pôs o baralho de lado: “Traz a vida nas mãos”. Trazia? “Eu vou ler e você vai ouvir.”
Ouviu. Vezes sem fim, de seguida, repetida. Anos a fio, a voz dela na cabeça dele. Vinte anos. Às voltas naquele quarto. Seu. O colchão amolgado do seu corpo, o chão ferido dos seus passos. Ouvia-a. “Nunca encontrei um destino assim. Não faça nada, nada que provoque a ira do fado. Há aqui um desaire. Dois, parecidos. Um está à sua espera em casa.” Assim era, o pai pum!, a mãe na cama por acordar. “Mas depois, depois disso é a glória. Destino de rei.” Quando já não conseguia escutar mais, as previsões ainda em eco a toldarem-lhe o juízo, sentava-se no chão junto à janela, entaipada com velhas tábuas. Cerrava as pálpebras e sentia a vida lá fora. O chão inteiro nos pés descalços e a terra, de quando em quando, a latejar como corpo de amante. A certa altura, ainda antes das fervuras, começara a ouvir vozes, um frenesim constante, gente sem medo de falar. Ao princípio assustara-se, pensou que viria a polícia, cacetetes em punho para rasgar a ousadia. Depois, deixou de tremer. Não entendia o que diziam, aos poucos fora-se esquecendo das palavras, sentia a sua existência e isso bastava. Por vezes, chegava uma música, canções soltas sem casa pobrezinha. Colava então o ouvido ao bolor da parede, mas já nada sabia do mundo. Como imaginar gente sobre carris debaixo dos seus pés, falar sem grades na esteira dos cravos?
O ar da manhã pouco corria na sala da mulher. Manuel pingava desassossego, ela não. Mas o suor de um era o de outro. Madame Soledad segurava-lhe a mão com força, a palma de encontro aos seus olhos, cor de quem caminha entre mundos. Não era cigana, apenas alma atrás do melhor vento. Entre uma tempestade e outra, aprendera a adorar as linhas. Sulcos falantes na mão de cada um. E a linha da vida de Manuel era funda como raiva de enxada em manhã de sementeira. A da cabeça não. Era de outra nação, entrecortada como se quisesse falar e não pudesse. Denunciava um homem, denunciava-o a ele, rapaz ainda aos tombos com ser quem é. A do coração, essa, nascia no exacto espaço onde deveria ter crescido o indicador. Linha por inteiro, sedutora como lua prenha. A mulher começou a desvendá-lo: “Parabéns, oh graças! É incrível! Vida de rei...” Sem freio, falava sem parar. E ele escutava, em silêncio, sem perguntas, quase embriagado, como se a cabeça em fermol. “Tem uma vida longa e cheia. Vai ser rico, muito rico, tão rico que não saberá o que fazer ao dinheiro. Vejo tanta, tamanha fortuna... Oh, oferece-me uns anéis?” E ele caído na rota do encanto. “Vai ter uma fábrica, não, duas, cinco! Dar emprego a muita gente e não ser empregado de ninguém.” As palavras rolavam dos lábios dela para os ouvidos dele, que nem dados em mesa de póquer. E ele percebia então. Tudo há muito escrito, o destino fundeado na palma da mão. Homem como disco num prato, faixa de vinil à espera de agulha, o futuro era certo. Canção. Apenas estar quieto para não baralhar a sorte.
Prendeu-se, liberdade de estar preso. Os anos a passarem e ele naquele quarto, sempre ali, encarcerado, a ouvi-la ainda. O futuro nas mãos e ele a cerrá-las para não perder o tempo. Caminhava em quadrados, pleno da medida exacta do seu mundo. A parede do fundo tinha três passos largos, a outra quatro, novamente três e outros quatro. Também podia medir em passinhos curtos, bailarino sem dança, 12 para o bolor do fundo, 16 ou 17 para a parede da cama, de novo 12 e mais 16. O lençol de flanela tornara-se tela de fios, roupa de cama em madeira que rangia e nada impedia de cair. Estava ali há 20 anos. Quieto. Duas décadas sem verbo. Gastas. Não fazer nada para não atordoar o destino.
Decidira assim, encerrar-se, cativo da sorte. Às vezes, ocorria-lhe desistir. Abrir a porta do quarto, esfregar os olhos para não estranhar a vida, subir o degrau do corredor, não bem isso mais lomba, e sair. A rua. Que imagem seria a do som? Pi-pi, pedrinhas a rolarem, acelera estúpido. Mas depois pensava em Carolina, lábios sedosos à espera dos seus. Podia tudo, menos arriscar-se a perdê-la. Desistia, ficava. Contava os anos pela barba. Começara por dar um nó, depois outro. Não sabe quando, falta-lhe saber tanto, desleixara-se. Nem mais um nó, pêlos pelo chão que nem vassoura. Contava os anos também pelos sonhos. De abóbora, fritos em óleo. Sempre dois, a deixarem nódoa no paninho de linho, todas as consoadas. Prenda do vizinho, isso e cinco velas, amigo de lançar pião sobre charneiras, na calçada da rua em frente.
No dia em que decidiu trancar-se à espera do futuro, pediu-lhe, ordenou-lhe que lhe levasse um prato de comida todos os começos de noite. Nada mais, nem palavras nem claridade. Sempre, até o destino acontecer. O outro retorquiu, não quis, mas Manuel foi em frente. Num abraço, lágrimas de adeus, cruzaram suas honras. Às vezes, quando o prato de comida (iscas é que não) tocava o chão do quarto, Manuel pensava chamá-lo. Gostava de saber o que lhe acontecera. O amigo era de azar, até a lançar o baraço sempre perdera. Imaginava-o, qual se despedira dele, à mercê do pai. Um velho sovina que dormia num travesseiro de serapilheira, diz-se que contos de réis a transbordar. Não corria água nem alento naquela casa. O chão fazia-se de agulhas de pinheiro, folhas de sobreiro e parras de periquita. Os ossos que o cão não queria amontoavam-se, as fezes de uns e de outros também. Chão estralhado, assim se chamava o engenho de poupar na tijoleira e ganhar no estrume. Coisa de gente bruta, ensinara-lhe a mãe, criada longe de tais usos. Arroto a sair da boca, navalha e queijo no bolso, dorso feito à sela do burro.
Madame Soledad tinha sotaque de ficar no ouvido. Falava como quem declama, as sílabas agudas sugadas até para além da pauta. Cheirava a hortênsias, chá de jasmim. E soprava o destino: “Estou a ver, sim, não tenho dúvidas, oh, que linda! Cabelos longos, pele macia, sorriso ateado. Chama-se Carolina, não é?” Era. “É sua, está-lhe destinada. Vão casar, ter filhos – quatro filhos – que felizes!” E ele a levitar, imaginar-se de mão dada a voar os anos. A mulher não se calava, a mão dele contava tanto que ela até o baralho desprezava. Fortuna, mulher amada, saúde, alegrias, presentes de sorrir. Ele ouviu até ao fim, cada palavra uma condenação. Saiu de lá a correr, rapaz feito rei. Caia uma chuva inquieta, uma pedra teimava em magoar-lhe o pé. Em dó menor, o estômago orquestrava. Sonata rouca, não tanto vontade de comer, mais fome. Esquecera-se do mata-bicho, chaleira ao lume. Chegou a casa e encontrou a mãe. Morta, morrera antes da alvorada. Abraçou-a e chorou-a. O resto do dia, a noite inteira. Mas as palavras da mulher cozinhavam-lhe ambições nos ouvidos. O desaire era aquele caixão de madeira barata e ele nele debruçado. A mulher acertara na dor, faltava cumprir-se a fortuna. À saída do cemitério passou por Carolina: “Até ao nosso casamento!”. A rapariga riu envergonhada, crente que era graça. Depois, o amigo e a porta do quarto a fechar-se. Trás!
Ele lá dentro, roupa desfeita pelo tempo. Já nem calças intactas para se sentir apertado, explosão de rapazinho, ao pensar na esquina da Rua da Jeropiga. Os olhos adourados feitos penumbra, os sons da rua a inquietarem-no. Na outra noite, quase jurava, alguém se encostara à sua janela a namorar. Ouvira juras de irem com o vento, não entendia como, o varandim da matrona palpitava a quarteirões. Caminhava de um lado para o outro. Cansado, corroído de tanto esperar. Suava, há horas que corria em quadrado, “vou apanhar-te, vou apanhar-te, anda cá malandro!”, como a mãe atrás das galinhas. Corria sem parar, tropeçava na barba, nos passos, na desilusão de si, “anda cá danado, vou apanhar-te! Anda cá, destino!” E caia, e corria, “ai Carolina”, e levantava-se e corria e caia.
Nisto, de repente, o inesperado. Como imaginar? Um barulho, a chave a rodar, um suspiro, última volta, um instante. De súbito, a porta do quarto a abrir-se. Alguém a abri-la. Vinte anos depois, o mundo de par em par. Ele cego, atordoado pela claridade, estourado, a atirar-se para o chão. Chorar sem lágrimas. Seco. Há quanto tempo secara? E o vizinho a livrar-se do papel de carcereiro: “Manel, desculpa, não posso mais!”. Vinte anos, durante tanto, mensageiro de o manter vivo. Sobrevivente. Agora desistia, não suportava mais. Baixou-se, abraçou-o: “Manel!”. Vinte anos passados, a história a parar (a começar). Levantou-o, sentaram-se na cama. Os dois homens. Cegos. Claridade lá de fora, escuridão cá de dentro. O vizinho falou, falou até não lhe restar palavra. Manuel demorou a ouvir. Via apenas. Pernas de mulheres a passarem, rodas apressadas, miúdos de sapatos novos. O país outro. A vida toda a um passo e ele, há vinte anos, num quadrado. Fechado.
Depois, ouviu, ouviu tudo até não lhe restar fé. Incrédulo. O amigo era um homem feliz. Lançara-se à vida, nos bancos da escola e nos becos do amor. Trepara a pulso. Estava rico, muito rico, tão rico que lhe comprara uma casa, alpendre e tudo. Estava ali para lhe dar as chaves. Esta, junto ao mercado, aguardava demolição, daria esquina a um banco. Das noites no chão de estralho, ranho a passear no buço, nem memória guardava. Tinha cinco fábricas, muitos empregados e ninguém a quem obedecer. Era feliz, oh, se era. Casara com Carolina, romance urdido a cartas de água mole. Viajavam com os filhos, netos a caminho, quatro filhos. Manuel escutava, cada palavra como bala em moribundo. Inconformado. Abriu a mão esquerda, olhou as linhas do destino. Ali estavam. O tempo passara por elas inclemente, já nem elas as mesmas. Não as reconhecia, não se reconhecia. Desistia-se. O seu destino a outro coubera. Ele não tinha nada, nem vida. Apenas sombra.
Há 20 anos, a mãe morreu pela manhã. Desconhecem-se as badaladas do último sopro, a ronda exacta dos ponteiros do relógio da sala. Esguio como ponto de exclamação: “Eu estou aqui e sou dono do teu tempo!”. Ninguém sabe quando morreu, andava para partir há muito. Um inchaço, uma dor, um cansaço – mal sem nome. Terá sofrido, sorrido? Ninguém sabe, ninguém viu. Nem o relógio de vaidades burguesas, oferecido por uma tia velha de que ninguém lembra o rosto. Em quando andaria ele? É dono do tempo, mas não do que cabe nele.
Manuel acordou à hora do costume, galo de crista no ar, silêncio de pernas curtas, sete badaladas. Despertou ansioso, o laço de um presente aguardava os nós dos seus dedos. Era o dia do seu aniversário. Quereres para amanhã desabotoavam-lhe o sorriso. Faltava-lhe um dente, nada que lhe roubasse o encanto. Corpo de celta, olhos adourados como que pincelados, coisa de arte. Esfregou-os, ramelas nas esquinas, afastou as mantas de lã – era Inverno, o frio aturdia – e levantou-se. Não com pressa, tranquilo como acreditava que os homens grandes faziam. Era o seu primeiro despertar de macho feito, faltava-lhe destrinçar a verdade da rotina. Se soubesse que a mãe estava morta, ou que se morria, ter-se-ia levantado de repente, num arroubo, sem sequer passar os dedos pelas pálpebras, menos ainda aguardar uns segundos, sentado na cama e nas ideias. Mas não adivinhava. Tão-pouco que o futuro eram aquelas quatro paredes bolorentas. Nunca mais se ergueria assim. Daí em diante, nas manhãs seguintes, nas manhãs dos próximos 20 anos, arrastar-se-ia na cama até as pernas desmaiarem no formigueiro do “não me movo”.
A mãe morreu antes das sete badaladas. Ou por aí, as carnes ainda quentes ao fumegar da chaleira. Ele fazia anos, 20 anos, virar homem. Esperava na cama, inquieto, vontade de correr até à cozinha, desapertar o nó do avental amarelo que ela nunca tirava, receber um beijo morno e o presente. O presente esperado. Sabia que a mãe amealhava há muito, moedas numa lata de alumínio azul, velho albergue de bolachas a açúcar salpicadas. Há uns anos, depois do desaire, homens de rosto cerrado levaram tudo o que tinham. A única fortuna que sobrou foi o cheiro a café acabado de fazer. E o amor. O amor que os mantinha lado a lado, a caminhar de queixo alto, desde o dia em que o pai se fora. Matara-se, pum! um tiro, morte que pesa a quem fica. Na escola, os miúdos faziam-lhe “pum!” E a verdade: “O meu pai matou-se”. Na rua, as vizinhas olhavam-no E a verdade: “O meu pai tinha dívidas, acobardou-se”. Em casa, a mãe abraçava-o E a verdade: “Estamos sozinhos”. Naquele dia, tudo se tornaria passado, jurava ele. Alcançava duas décadas, idade bastante para pum! fantasma.
Levantou-se da cama, lençol de flanela damasco maduro, tropeçou nos chinelos, correu, bateu a porta do quarto – para trás ficava a máscara de chegar a crescido. Mas na cozinha nada, nem café à sua espera nem avental para descarregar tropelias. Pôs a chaleira ao lume, deu voltas à mesa, dentes numa côdea de ontem. Junto ao saquinho de linho branco, Pão a ponto-cruz bordado, achou qualquer coisa, laço de presente. Um envelope: “Para o meu filho”. Ele. Tivesse pai e a prenda era a água-benta da geração. A todos calhava, de mão-beijada, um certo travo a orquídea em álcool. Uma ida às meninas da Rua da Jeropiga, luz encarnada a indicar a porta, saiotes a amaciarem chão, pares ao ritmo de quadris em calças de cotim. Mas não tinha. E a mãe, mais devota ao terço do que às intempéries do desejo, nunca o deixaria assim soltar os suspensórios. Continuava por chegar a data de Manuel aportar no varandim, cortina de veludo a fazer de porta, descobrir a matrona: “Porte-se benzinho, doutor”. Para que amealhara a mãe?
Meses a fazer bolos, bater ovos com farinha, tirar do forno e vender de casa em casa. No dia dos 20 anos, havia de dar ao filho entrada nos mistérios da vida. Não nas meninas, na bruxa. Antes, mulher de adivinhar. No fundo, e tirado o mote do prazer, ir a umas ou a outra assentava no mesmo. Pôr o destino nas mãos de alguém. A nu. Como se o descobrir fosse uma tentação de onde não se consegue sair. Estava decidida a dar-lhe o futuro de presente. O rapaz, sina na mão áspera, entrou e saiu da cozinha: “Mãe!”. Ela não respondeu, ele deu-a por atarefada na horta. Dar comida às galinhas, cortar ervas e encher o tanque de água. Gelada, graus de enrugar dedos. Ele encolheu os ombros, pegou no envelope embrulhado. Atirou o laço para cima da mesa, toalha com pêras pintadas, fruteira vazia. Leu: “Vale uma consulta na Madame Soledad”. Trazia a morada, dez minutos a caminhar. “Mãe, mãe! Vou lá a correr! Obrigada!” A chaleira a fumegar, os bichos a roerem a madeira do soalho, resposta alguma. “Mãe!” Nada. Demasiado burburinho nele para ouvir o silêncio. Partiu. Passos apressados, um cão no rasto, latidos em vez de banda, manchas castanhas nas orelhas, magreza a pedir ternura.
Dez minutos, cansaço nas pernas. Deteve-se. Duas portas erguiam-se à sua frente. Numa, salivar, cheiro morno de bolo de chocolate; noutra, franzir, odor quente de velas à espera. Manuel, intuição nos pés, aproximou-se da segunda. Nesse instante, a vida a começar (a parar). Quatro dedos de medo na maçaneta da porta, periclitantes. A mão esquerda ali, um minuto, dois, e nada. O cão calara-se, fora-se de orelhas baixas. O rapaz tremia, devia dizer “bom dia”, mas os lábios silenciavam-se. O corpo inteiro no mesmo compasso, nem rodar nem falar. Em frente a uma porta, maré de suor na maçaneta de madeira. Gasta, uma farripa a espetar as carnes. Aquela mulher do outro lado. A senti-lo perto, por ali, a chegar. A levantar-se da cadeira, passos esguios, quatro nem mais nenhum. Abrir a porta, a maçaneta a rodar e ele no corredor sem a conseguir largar. O lenho a cravar-se no monte de Saturno e ele preso à dor do descobrir. A porta a mover-se: “Estou à sua espera”. O rapaz a entrar. Abrir muito os olhos para ver melhor.
Primeiro, uma mancha encarnada. O cabelo dela como rosas desavindas. Depois, os santos, santinhos, imagens de pôr fé, numa prateleira, noutra, no chão, na mesa. Um gato preto a passar, caminhar vaidoso, via-se que capado. Uma mesa redonda e duas cadeiras, almofadas a jurarem conforto. Um lugar para ela e outro para ele. E ali, à vista de ambos, à mão dela, as cartas. Um baralho velho, gasto, o enforcado amarelado. Como se chamava ela? A esticar-lhe a mão: “Entre”. E a mão magra, quase escanzelada, veias prontas a zarparem, branca, muito branca, a indicar-lhe passagem: “Faça favor”. E ele a transpor o umbral, molhado de ansiedade. Os olhos dele presos à mão dela. Não bem à mão, mais ao indicador. Olhava sempre, era o que primeiro via em alguém. O indicador da mão esquerda - sangue de coração, quente até à raia. O dela mais ainda, quase tocava o dedo médio. Ordenava e ele cumpria.
Madame Soledad. Havia qualquer coisa nela que o baralhava. Cartas paradas à espera de lhe encontrarem o futuro. E o indicador a mostrar-lhe a cadeira: “Sente-se”. Sentou-se. Calado de medo. Rosto quente, desatino escalda. O indicador dela como pêndulo, ele a entregar-lhe o pensamento. O dedo vestido de anéis, pechisbeque a valer ouro, plástico a encarnar rubi. E a unha encarnada, afiada, a despontar como varinha de condão. E ele sem nenhum, um vazio no lugar do indicador. Nasceu assim, sabe-se lá porquê, desdado. A mãe bem lhe dizia, à noite, antes de arrumar as agulhas de bordar num saquinho, em tempos de alfazema: “Ai rapaz, estás fadado a não encontrar destino”. Desatino queima. Também por isso lhe oferecera aquele presente - cartas na manga para emendar a natureza.
Quantas vezes reviveria aquele momento? Todas as horas, todos os dias, todos os anos daqueles 20 anos. Encurvado na cama como bicho acossado, às voltas como ponteiro sem Norte. Fechado em quatro paredes. Elas bolorentas e ele também. Morto, à espera da vida. Nos primeiros meses, talvez ainda nos primeiros anos, o relógio da sala continuou a anunciar o escorrer das horas. Badaladas, presente a engolir futuro, badaladas. Depois, calou-se. Acabou-se a pilha, cansou-se de não ter em quem mandar no tempo. E ele deixou de o ouvir. Pouco se importou, o seu único ponteiro era mesmo o prato de comida. Um prato de servir sopa, esmalte branco e rebordo azul, coberto com um paninho bordado. Para não arrefecer, para limpar os lábios. Todos os finais de tarde, duas pancadas de punho cerrado na porta do quarto, tum-tum, a chave a rodar de mansinho, nem uma palavra, uma nesga de claridade, o prato no chão. Ele a apanhá-lo, a comer, mais um risco na parede, mais um dia desperdiçado. (Gostava de bacalhau com grão, espinhas guardadas para traçar calendário.) Às vezes, a cabeleireira encarnada daquela mulher tomava-lhe de assalto o olhar marejado. Espinhos: “Vai chegar a casa e encontrar um grande desaire”. A visão dela imbuída no retrato da mãe. Deitada na cama, morta ao amanhecer. Acertara na desgraça como não acertar no resto? Pensava nisto, via e revia o indicador de ourivesaria, unha a indicar marcha. Aquietava-se. Sem saber se dia se noite, quedo. E credo. Mas isso foi depois de a conhecer.
Havia velas espalhadas pela sala da mulher. Manuel revolvia-se na cadeira. Ela olhava-o sem verbo. Percebeu que era canhoto, pediu-lhe a mão esquerda. Decifrar que rumo seguiam seus dias. Ele avançou, tanto medo quanto à porta. Ao toque, ao primeiro toque, sentiu uma claridade (surpresa talvez) trespassar-lhe o peito. Algo estranho, nunca assim sentira. Nem quando se aventurara a cruzar a Rua da Jeropiga, carnes de mulher na esquina, nem sequer ao pousar a sua, na mão de Carolina. Na festa da terra, acordes de gaiteiros e ruído de cadeirinhas em círculo. Aquela mulher atordoava-o. Bruxa, adivinha. Talvez a insensatez do dedo dela, o cabelo não, talvez o ardor do olhar vazio, sem sombra de alegria ou de tristeza. De repente, ela sugou-o ao pensamento. O seu dedo percorria-lhe a mão como vento. Amainou, chamou-o pelo nome. Manuel. A mãe podia (devia) ter feito as apresentações, não se espantou. “É um homem de sorte.” Ele gostou daquelas palavras. Na verdade, era um poço onde corria a água turva da crença. Acreditava em Deus, em tudo o que fosse maior do que ele. E isso era, em pequeno, o relógio da sala. Em grande, o raio que fulminara a árvore do quintal. A igreja ao domingo, dormitar no sermão e nas velinhas. E era aquela mulher. Aprendera a crer no regaço da mãe, cedo entendera que a fé é o respirar dos infelizes. Dança de pulmões, para baixo e para cima. Ela pôs o baralho de lado: “Traz a vida nas mãos”. Trazia? “Eu vou ler e você vai ouvir.”
Ouviu. Vezes sem fim, de seguida, repetida. Anos a fio, a voz dela na cabeça dele. Vinte anos. Às voltas naquele quarto. Seu. O colchão amolgado do seu corpo, o chão ferido dos seus passos. Ouvia-a. “Nunca encontrei um destino assim. Não faça nada, nada que provoque a ira do fado. Há aqui um desaire. Dois, parecidos. Um está à sua espera em casa.” Assim era, o pai pum!, a mãe na cama por acordar. “Mas depois, depois disso é a glória. Destino de rei.” Quando já não conseguia escutar mais, as previsões ainda em eco a toldarem-lhe o juízo, sentava-se no chão junto à janela, entaipada com velhas tábuas. Cerrava as pálpebras e sentia a vida lá fora. O chão inteiro nos pés descalços e a terra, de quando em quando, a latejar como corpo de amante. A certa altura, ainda antes das fervuras, começara a ouvir vozes, um frenesim constante, gente sem medo de falar. Ao princípio assustara-se, pensou que viria a polícia, cacetetes em punho para rasgar a ousadia. Depois, deixou de tremer. Não entendia o que diziam, aos poucos fora-se esquecendo das palavras, sentia a sua existência e isso bastava. Por vezes, chegava uma música, canções soltas sem casa pobrezinha. Colava então o ouvido ao bolor da parede, mas já nada sabia do mundo. Como imaginar gente sobre carris debaixo dos seus pés, falar sem grades na esteira dos cravos?
O ar da manhã pouco corria na sala da mulher. Manuel pingava desassossego, ela não. Mas o suor de um era o de outro. Madame Soledad segurava-lhe a mão com força, a palma de encontro aos seus olhos, cor de quem caminha entre mundos. Não era cigana, apenas alma atrás do melhor vento. Entre uma tempestade e outra, aprendera a adorar as linhas. Sulcos falantes na mão de cada um. E a linha da vida de Manuel era funda como raiva de enxada em manhã de sementeira. A da cabeça não. Era de outra nação, entrecortada como se quisesse falar e não pudesse. Denunciava um homem, denunciava-o a ele, rapaz ainda aos tombos com ser quem é. A do coração, essa, nascia no exacto espaço onde deveria ter crescido o indicador. Linha por inteiro, sedutora como lua prenha. A mulher começou a desvendá-lo: “Parabéns, oh graças! É incrível! Vida de rei...” Sem freio, falava sem parar. E ele escutava, em silêncio, sem perguntas, quase embriagado, como se a cabeça em fermol. “Tem uma vida longa e cheia. Vai ser rico, muito rico, tão rico que não saberá o que fazer ao dinheiro. Vejo tanta, tamanha fortuna... Oh, oferece-me uns anéis?” E ele caído na rota do encanto. “Vai ter uma fábrica, não, duas, cinco! Dar emprego a muita gente e não ser empregado de ninguém.” As palavras rolavam dos lábios dela para os ouvidos dele, que nem dados em mesa de póquer. E ele percebia então. Tudo há muito escrito, o destino fundeado na palma da mão. Homem como disco num prato, faixa de vinil à espera de agulha, o futuro era certo. Canção. Apenas estar quieto para não baralhar a sorte.
Prendeu-se, liberdade de estar preso. Os anos a passarem e ele naquele quarto, sempre ali, encarcerado, a ouvi-la ainda. O futuro nas mãos e ele a cerrá-las para não perder o tempo. Caminhava em quadrados, pleno da medida exacta do seu mundo. A parede do fundo tinha três passos largos, a outra quatro, novamente três e outros quatro. Também podia medir em passinhos curtos, bailarino sem dança, 12 para o bolor do fundo, 16 ou 17 para a parede da cama, de novo 12 e mais 16. O lençol de flanela tornara-se tela de fios, roupa de cama em madeira que rangia e nada impedia de cair. Estava ali há 20 anos. Quieto. Duas décadas sem verbo. Gastas. Não fazer nada para não atordoar o destino.
Decidira assim, encerrar-se, cativo da sorte. Às vezes, ocorria-lhe desistir. Abrir a porta do quarto, esfregar os olhos para não estranhar a vida, subir o degrau do corredor, não bem isso mais lomba, e sair. A rua. Que imagem seria a do som? Pi-pi, pedrinhas a rolarem, acelera estúpido. Mas depois pensava em Carolina, lábios sedosos à espera dos seus. Podia tudo, menos arriscar-se a perdê-la. Desistia, ficava. Contava os anos pela barba. Começara por dar um nó, depois outro. Não sabe quando, falta-lhe saber tanto, desleixara-se. Nem mais um nó, pêlos pelo chão que nem vassoura. Contava os anos também pelos sonhos. De abóbora, fritos em óleo. Sempre dois, a deixarem nódoa no paninho de linho, todas as consoadas. Prenda do vizinho, isso e cinco velas, amigo de lançar pião sobre charneiras, na calçada da rua em frente.
No dia em que decidiu trancar-se à espera do futuro, pediu-lhe, ordenou-lhe que lhe levasse um prato de comida todos os começos de noite. Nada mais, nem palavras nem claridade. Sempre, até o destino acontecer. O outro retorquiu, não quis, mas Manuel foi em frente. Num abraço, lágrimas de adeus, cruzaram suas honras. Às vezes, quando o prato de comida (iscas é que não) tocava o chão do quarto, Manuel pensava chamá-lo. Gostava de saber o que lhe acontecera. O amigo era de azar, até a lançar o baraço sempre perdera. Imaginava-o, qual se despedira dele, à mercê do pai. Um velho sovina que dormia num travesseiro de serapilheira, diz-se que contos de réis a transbordar. Não corria água nem alento naquela casa. O chão fazia-se de agulhas de pinheiro, folhas de sobreiro e parras de periquita. Os ossos que o cão não queria amontoavam-se, as fezes de uns e de outros também. Chão estralhado, assim se chamava o engenho de poupar na tijoleira e ganhar no estrume. Coisa de gente bruta, ensinara-lhe a mãe, criada longe de tais usos. Arroto a sair da boca, navalha e queijo no bolso, dorso feito à sela do burro.
Madame Soledad tinha sotaque de ficar no ouvido. Falava como quem declama, as sílabas agudas sugadas até para além da pauta. Cheirava a hortênsias, chá de jasmim. E soprava o destino: “Estou a ver, sim, não tenho dúvidas, oh, que linda! Cabelos longos, pele macia, sorriso ateado. Chama-se Carolina, não é?” Era. “É sua, está-lhe destinada. Vão casar, ter filhos – quatro filhos – que felizes!” E ele a levitar, imaginar-se de mão dada a voar os anos. A mulher não se calava, a mão dele contava tanto que ela até o baralho desprezava. Fortuna, mulher amada, saúde, alegrias, presentes de sorrir. Ele ouviu até ao fim, cada palavra uma condenação. Saiu de lá a correr, rapaz feito rei. Caia uma chuva inquieta, uma pedra teimava em magoar-lhe o pé. Em dó menor, o estômago orquestrava. Sonata rouca, não tanto vontade de comer, mais fome. Esquecera-se do mata-bicho, chaleira ao lume. Chegou a casa e encontrou a mãe. Morta, morrera antes da alvorada. Abraçou-a e chorou-a. O resto do dia, a noite inteira. Mas as palavras da mulher cozinhavam-lhe ambições nos ouvidos. O desaire era aquele caixão de madeira barata e ele nele debruçado. A mulher acertara na dor, faltava cumprir-se a fortuna. À saída do cemitério passou por Carolina: “Até ao nosso casamento!”. A rapariga riu envergonhada, crente que era graça. Depois, o amigo e a porta do quarto a fechar-se. Trás!
Ele lá dentro, roupa desfeita pelo tempo. Já nem calças intactas para se sentir apertado, explosão de rapazinho, ao pensar na esquina da Rua da Jeropiga. Os olhos adourados feitos penumbra, os sons da rua a inquietarem-no. Na outra noite, quase jurava, alguém se encostara à sua janela a namorar. Ouvira juras de irem com o vento, não entendia como, o varandim da matrona palpitava a quarteirões. Caminhava de um lado para o outro. Cansado, corroído de tanto esperar. Suava, há horas que corria em quadrado, “vou apanhar-te, vou apanhar-te, anda cá malandro!”, como a mãe atrás das galinhas. Corria sem parar, tropeçava na barba, nos passos, na desilusão de si, “anda cá danado, vou apanhar-te! Anda cá, destino!” E caia, e corria, “ai Carolina”, e levantava-se e corria e caia.
Nisto, de repente, o inesperado. Como imaginar? Um barulho, a chave a rodar, um suspiro, última volta, um instante. De súbito, a porta do quarto a abrir-se. Alguém a abri-la. Vinte anos depois, o mundo de par em par. Ele cego, atordoado pela claridade, estourado, a atirar-se para o chão. Chorar sem lágrimas. Seco. Há quanto tempo secara? E o vizinho a livrar-se do papel de carcereiro: “Manel, desculpa, não posso mais!”. Vinte anos, durante tanto, mensageiro de o manter vivo. Sobrevivente. Agora desistia, não suportava mais. Baixou-se, abraçou-o: “Manel!”. Vinte anos passados, a história a parar (a começar). Levantou-o, sentaram-se na cama. Os dois homens. Cegos. Claridade lá de fora, escuridão cá de dentro. O vizinho falou, falou até não lhe restar palavra. Manuel demorou a ouvir. Via apenas. Pernas de mulheres a passarem, rodas apressadas, miúdos de sapatos novos. O país outro. A vida toda a um passo e ele, há vinte anos, num quadrado. Fechado.
Depois, ouviu, ouviu tudo até não lhe restar fé. Incrédulo. O amigo era um homem feliz. Lançara-se à vida, nos bancos da escola e nos becos do amor. Trepara a pulso. Estava rico, muito rico, tão rico que lhe comprara uma casa, alpendre e tudo. Estava ali para lhe dar as chaves. Esta, junto ao mercado, aguardava demolição, daria esquina a um banco. Das noites no chão de estralho, ranho a passear no buço, nem memória guardava. Tinha cinco fábricas, muitos empregados e ninguém a quem obedecer. Era feliz, oh, se era. Casara com Carolina, romance urdido a cartas de água mole. Viajavam com os filhos, netos a caminho, quatro filhos. Manuel escutava, cada palavra como bala em moribundo. Inconformado. Abriu a mão esquerda, olhou as linhas do destino. Ali estavam. O tempo passara por elas inclemente, já nem elas as mesmas. Não as reconhecia, não se reconhecia. Desistia-se. O seu destino a outro coubera. Ele não tinha nada, nem vida. Apenas sombra.
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