quinta-feira, 2 de julho de 2009
LOMOFONIA
Durante alguns meses, publiquei uma rubrica na revista "Única", do jornal "Expresso". Chamava-se Lomofonia. Todas as semanas, em quatro parágrafos e numa foto Lomo, a história de uma pessoa do mundo lusófono. Vidas na primeira pessoa. De vez em quanto, uma ou outra aparecerá aqui.
Hoje, O Senhor do Adeus
Tudo isto é solidão? Essa senhora é uma malvada, que me persegue por entre as paredes vazias de casa. Para lhe escapar, venho para aqui. Acenar é a minha forma de comunicar, de sentir gente. Como noutros tempos? Que nem quando a minha mãe era viva e a vida soava a festa. Eu sou da idade em que os senhores usavam chapéu. No cinema era um horror, nós a querermos ver os amores e a elegância a turvar-nos a vista. As senhoras falavam francês, tocavam piano. Oh, era maravilhoso! Eu vi a Ginger Rogers na Broadway, o Aznavour no Moulin Rouge, a miséria da União Soviética e a fiesta de Madrid... São quase duas da manhã e os carros não param de lhe apitar. Nem eu de lhes acenar. Só fico triste quando o movimento acaba.
Desde quando este passeio é a sua casa? Venho para a Praça Duque de Saldanha, desde que fiquei nas mãos de não ter ninguém. Nasci aqui perto, na casa da minha avó. Um palacete tão bonito, que o Calouste Gulbenkian quis comprá-lo - parece que não queria morrer no Hotel Avis. Vê-se que foi um menino rico. Sou filho de gente abastada, nunca trabalhei nem entrei numa cozinha... Diz isso com um certo embaraço. Sou preguiçoso para tudo, menos para dizer adeus a quem por aqui passa. Enfim, nada dura para sempre, é fortuna que já lá vai. A vida dá estranhas voltas, o meu destino é acenar a quem me cumprimenta. Estou sujeito a que me chamem maluco, mas não me importo. Da minha solidão, sei eu.
Está aqui todas as noites como quem pica o ponto no emprego. É a minha missão. Quer ouvir a história? Começou por acaso... Eu andava pela rua, a espantar a madrugada, e as pessoas começaram a acenar-me. Respondi, correspondi – agora, é a minha vida. Tenho um pouco de vampiro - à noite não durmo, vagueio. Quando passa um carro antigo, lembro-me do meu pai. No tempo em que os carros eram raro luxo, ele tinha um Dodge muito chique. Ainda bem que então eu era novo. Se fosse velho, seria triste – sem carros, a quem acenaria? Quem lhe buzina mais? Toda a gente. Antes, a grande diferença era entre Verão e Inverno, agora estamos na estação da crise. As pessoas rendem-se à bolsa vazia, ficam mais em casa.
O mundo tem mudado bastante? É uma coisa fantástica! Até no cinema, que trocou a pieguice pela tecnologia. Oh, o que chorei a ver “E Tudo o Vento Levou”! Eu vivi os grandes momentos do século passado: o lançamento da bomba atómica, a queda do muro de Berlim, a ida do homem à lua. Viu pela televisão? Houve quem duvidasse, eu acreditei logo. Mas estou decepcionado, dizia-se que em 2000 já haveria viagens interplanetárias. Tenho fintado a morte, mas começo a acreditar que é viagem que só farei de pálpebras cerradas e imaginação aberta. Iria acenar para Marte? Se lá houvesse carros, pessoas com quem comunicar e essa senhora malvada, que dá pela graça de solidão.
João Manuel Serra, 78 anos